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    Marcelo Leite

    Direitos não humanos

    27/04/2015 02h05

    A tribo da defesa dos animais viveu momentos de euforia na segunda-feira passada (20). A notícia correu o mundo: pela primeira vez um tribunal –nada menos que a Corte Suprema do Estado de Nova York– havia reconhecido que chimpanzés são pessoas. Como nós.

    Durou pouco, é verdade, a alegria da ONG Projeto Direitos Não Humanos (NhRP, em inglês), da Flórida. Mas o caso judicial levantado por ela tem seu mérito.

    A NhRP processava a Universidade de Stony Brook para que libertasse os chimpanzés Hercules e Leo, usados em pesquisa biomédica. Conseguiu o equivalente a um habeas corpus, decisão que naquele Estado americano só pode beneficiar pessoas.

    Não era bem uma ordem de soltura, contudo. A juíza Barbara Jaffe apenas decidira que a universidade teria de comparecer à corte para justificar a legalidade da "detenção" dos macacos, cuja libertação (ou não) só seria deliberada na segunda fase do processo.

    A ONG saiu trombeteando que Hercules e Leo haviam sido reconhecidos como "pessoas", titulares de direitos. Juristas reagiram afirmando que a interpretação era abusiva. Para eliminar dúvidas, a juíza republicou a decisão deletando a expressão "writ of habeas corpus" do cabeçalho.

    A audiência para decidir a sorte de Hercules e Leo está marcada para 27 de maio. Até lá, continuarão enjaulados em Stony Brook. É improvável, porém, que o julgamento tire alguma conclusão sobre serem eles pessoas ou não, uma questão difícil de resolver.

    Nenhum transeunte, em qualquer cidade do mundo, diria que chimpanzés são pessoas, mas sim que são animais. Só que pessoas (como nós) também são animais. Animais racionais, costuma-se dizer, embora haja exemplos de pessoas que fazem duvidar ser essa uma condição universal.

    O que se chama de "razão" é só um grau astronomicamente complicado do sistema cognitivo presente em vários animais ditos irracionais. Nós, seres humanos, temos a mania de atribuir diferenças como essas a naturezas essencialmente separadas: seres humanos aqui e animais do lado de lá de um abismo metafísico.

    Na realidade, muitos estudos têm comprovado que macacos superiores, como chimpanzés, gorilas e orangotangos, partilham conosco faculdades que antes acreditávamos exclusivas da espécie humana. Compaixão. Senso de justiça. Manuseio de ferramentas. Traição.

    Há quem prefira como divisores de águas evolutivas as noções de consciência ou livre arbítrio. Na falta de definição melhor, a capacidade de decidir e agir após reflexão sobre aspectos e consequências abstratas do problema em vista.

    Ora, esse conceito se acha sob artilharia pesada da neurociência, uma legião disciplinadamente engajada na missão de naturalizar todos os comportamentos humanos. Denunciam-se aqueles conceitos como ilusões secretadas pelo cérebro humano, como o fígado secreta bile. Fingimos tão bem não ser autômatos comandados por instintos, genes e vieses que passamos a acreditar na própria autonomia.

    Por que então não estender aos animais mais parecidos com os humanos, em matéria de complicação, algumas de nossas prerrogativas legais? A NhRP pede que se reconheça apenas uma, a liberdade corporal, ou seja, o direito de não viver encarcerado.

    Num outro caso judicial, porém, a ONG da Flórida já colheu decisão desfavorável. Segundo o magistrado, o chimpanzé Tommy não tem deveres nem responsabilidades, portanto não se qualifica como pessoa, em sentido moral e jurídico.

    É um argumento estranho. Deveres e responsabilidades para com quem, os seres superiores que o mantêm cativo?

    Se vivesse em liberdade no mato, Tommy faria parte de um bando. Ocuparia lugar numa certa hierarquia e teria parceiros de jogos, caça, guerra e procriação – deveres e responsabilidades, pois não?

    Mais esquisito ainda é que a NhRP quer a liberdade de Hercules, Leo e Tommy para... confiná-los numa ilha artificial de 10 mil metros quadrados em Fort Pierce, Flórida. Alega que ali teriam as condições ambientais mais próximas, na América do Norte, de seu habitat natural e conviveriam com dezenas de outros chimpanzés resgatados.

    A coisa toda parece mais uma progressão de pena – da penitenciária para uma colônia agrícola – do que uma verdadeira libertação. O reconhecimento pleno do direito à liberdade corporal dos chimpanzés-pessoas implicaria levá-los de volta para as terras africanas de onde eles, ou seus antepassados, nunca deveriam ter sido raptados.

    Qualquer outro destino é zoológico, aberto ao público ou não.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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