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    Marcelo Leite

    Fora da caixa e da casinha

    14/06/2015 01h38

    Poucos lugares comuns são tão difundidos quanto a ideia de que artistas são meio malucos. E não é que a genômica veio mais uma vez comprovar que o senso comum pode ter razão –ou seja, que as pessoas mais inclinadas a pensar fora da caixa não raro acabam saindo da casinha?

    A maior incidência de distúrbios mentais como esquizofrenia e transtorno bipolar entre músicos, cientistas, dançarinos ou escritores já é bem estabelecida. Para além de evidências anedóticas, como a orelha decepada de Vincent van Gogh, há dados epidemiológicos sobre isso (e eles indicam uma chance 50% maior de cometer suicídio).

    Surgiu daí a hipótese de que criatividade e propensão para doenças psiquiátricas pudessem ter origem biológica. Afinal, apesar de muita gente acreditar que essas são afecções do espírito e não da matéria, é no cérebro que elas se materializam.

    Se há biologia envolvida, pode-se apostar sem chance de errar que há genes a intermediar os processos (pois nada num organismo ocorre sem o concurso do DNA guardado nos núcleos das células). Coisa muito diversa, contudo, é provar isso, como afirma ter feito Kári Stefánsson.

    O neurologista e geneticista islandês é velho conhecido de quem acompanha esse campo de estudos nos 15 anos desde a decifração da sequência do genoma humano. Tomando partido dos bons registros genealógicos e do tamanho modesto da população de seu país, ele montou um banco de dados com informações sobre variantes individuais de genes e condições de saúde que trouxe fama e lucros para sua empresa deCode.

    Essa massa de dados permitiu que Stefánsson empregasse métodos de análise estatística para identificar as sequências de DNA mais fortemente correlacionadas com esquizofrenia e bipolaridade. De posse desses marcadores genéticos, ele foi espiar, entre 90 mil islandeses, quem dos não portadores de distúrbios mentais carregava as mesmas variantes genéticas.

    Não deu outra. Os genes tomados como marcadores das duas psicoses são mais frequentes entre pessoas com profissões criativas ou integrantes de sociedades artísticas, relatam Stefánsson e sua equipe na edição de 8 de junho do periódico especializado "Nature Neuroscience".

    "Vimos que a anormalidade no pensamento, ou o pensamento 'fora da caixa' se quiserem, não é consequência de nenhum desses distúrbios", afirma Stefánsson. "Na realidade, é provável que você já pense diferentemente devido a essas variantes genéticas comuns que alteram a função cognitiva, as quais então o põem sob risco aumentado de desenvolver esquizofrenia."

    O pesquisador islandês se esforça por esclarecer que a correlação ora comprovada não significa que a criatividade é a causa da doença psíquica.

    O que seu estudo aponta é que essas duas variações do espírito humano parecem ter um substrato genético comum.

    A pior coisa que poderia acontecer com essa pesquisa seria os pais de crianças e adolescentes mais criativos que a média concluírem que essa condição condene seus filhos a enlouquecer, ou que a criatividade seja um defeito. Nunca foi. O verdadeiro problema aqui é a tendência do senso comum a pensar dentro da caixa.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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