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    Marcelo Leite

    Bem comum

    18/10/2015 02h00

    Jornalistas e homens de negócios subscrevem sem hesitar a tese de que a motivação fundamental das ações de cada ser humano é o auto-interesse. Todos nós estaríamos no mundo para maximizar os próprios benefícios e vantagens, ainda que à custa dos outros.

    Essa noção rude da natureza humana se popularizou no conceito de Homo economicus. A perseguição de objetivos egoístas pelos indivíduos só se anularia por meio da concorrência no mercado, que premia os mais eficientes e assim garantiria o bem comum.

    Não têm faltado livros, colunas e reportagens sobre neurociência e psicologia evolutiva para corroborar essa visão. A voga editorial se passa por reação pragmática e realista à ficção do bom selvagem.

    E se não for nada disso? E se for ela mesma uma ideologia sintonizada com a onda conservadora que varre o país e boa parte do mundo?

    Felizmente existem jornalistas dispostos a desafinar o coro dos contentes com a natureza humana. Um deles é o colunista George Monbiot, do diário britânico "The Guardian", que na quarta-feira (14) publicou um artigo para o qual chamou atenção o economista José Eli da Veiga.

    Monbiot dá publicidade a um estudo inédito da Common Cause Foundation baseado em entrevistas com mil pessoas. Colheram-se duas revelações transformadoras, diz: 1) a maioria (74%) segue valores altruístas; 2) a maior parte (78%) também acredita que os outros são mais egoístas do que na realidade são.

    A explicação óbvia para os adeptos do H. economicus é que os entrevistados estão mais perto da verdade no resultado (2). E que (1) não passa de auto-engano edificante (ou tentativa de impressionar o entrevistador).

    Há outra possibilidade, porém. A regra entre seres humanos pode bem ser o altruísmo (1). E (2) se explicaria por um erro grave de julgamento sobre o que predomina nos corações e mentes dos semelhantes.

    Monbiot afirma que a baixa prevalência do egoísmo está em linha com outros estudos. Cita um artigo de revisão –tentativa de estabelecer o estado da arte na matéria­– no periódico "Frontiers in Psychology" segundo o qual o comportamento humano com relação a outros indivíduos da espécie não tem paralelo no mundo animal.

    Seríamos únicos, dizem Keith Jensen, Amrisha Vaish e Marco Schmidt, da Universidade de Manchester (Reino Unido) e do Instituto Max Planck de Leipzig Alemanha), em nossa capacidade de empatia, de preocupação com o bem-estar alheio e de criar normas para alinhar comportamentos.

    E todos aqueles estudos, que receberam tanto destaque, mostrando que outras espécies –sobretudo chimpanzés– também exibem senso moral e de justiça? A resposta curta dos revisores: são ocorrências especiais, às quais faltam o grau de coordenação e a quantidade de regras dos humanos.

    Eu não sei se Monbiot e cia. estão certos ou não. Só sei que generalizações sobre a natureza humana são muito difíceis de provar e que as modas intelectuais vêm e passam, como tudo.

    Nós, humanos, provavelmente não somos essencialmente egoístas nem altruístas. Depende muito do indivíduo e da situação concreta. E cada um escolhe os estudos que melhor se encaixam nos valores que já carrega consigo.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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