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    Marcelo Leite

    Bolor e Alzheimer

    26/10/2015 02h00

    De tempos em tempos somos sacudidos por revelações perturbadoras da pesquisa biomédica. A mais nova –e chocante– apareceu no último dia 15: o mal de Alzheimer parece ter uma relação forte com infecções por fungos.

    O estudo, de um time espanhol liderado por Luis Carrasco, da Universidade Autônoma de Madri, saiu no periódico "Scientific Reports".

    Carrasco e cia. examinaram amostras de cérebros de uma dezena de pessoas que morreram com a doença e outro tanto de indivíduos não afetados (grupo de controle). Só encontraram sinais de fungos no primeiro lote.

    Filamentos chamados de hifas, aquelas fibras diáfanas que brotam em cantos escuros e úmidos, foram encontrados entre as células neurais dos que sofreram com Alzheimer. É difícil imaginar figura geriatricamente mais incorreta: bolor, mofo, no cérebro de idosos dementes.

    Alzheimer é uma moléstia cruel, sabem todos que têm alguém querido atacado por ela. Caracterizada pela formação de placas da proteína beta-amilóide no cérebro, a doença está por trás da maioria dos casos de demência, que pode afetar 7% dos brasileiros com mais de 65 anos.

    Não se conhece bem sua origem, e não há terapia eficaz. O trabalho de Carrasco abre uma avenida de possibilidades de pesquisa em busca de tratamentos, mas é certo que muitos anos ainda seriam necessários para chegar a novos tratamentos –ou não, levando a novos becos sem saída.

    Há muito se especula que micróbios, como os fungos, podem estar por trás desse mal. O grupo espanhol testou as amostras primeiro com anticorpos que reagem a proteínas fúngicas. Depois, comprovou a presença de DNA específico desses micro-organismos nos filamentos isolados do cérebro.

    Duas dezenas de pacientes são muito pouco para provar qualquer coisa em medicina. Mas salta aos olhos os números obtidos pela equipe madrilena: 100% de infeção nos afetados e 100% de ausência no grupo de controle.

    Isso não constitui evidência, contudo, de que leveduras e similares sejam a causa do Alzheimer. Não se exclui a hipótese de que a doença, caso tenha outra origem, predisponha os idosos para sucumbirem às infecções por fungos.

    Os autores do artigo dizem nele que só a realização de estudos clínicos detalhados permitirá estabelecer se fungos causam sozinhos a enfermidade.

    Eles indicam, em favor de sua hipótese, que não há contradição flagrante com os sintomas ou a progressão do Alzheimer. Trata-se de doença com desenvolvimento lento, que vem acompanhada de inflamações –ambas manifestações compatíveis com infecções crônicas por fungos.

    Não é a primeira vez que se descobrem os elos entre infecções (e inflamações decorrentes delas) e moléstias graves, de alto custo individual e social.

    Foi assim com as úlceras e tumores de estômago, que hoje podem ser prevenidos com antibióticos contra a bactéria H. pylori. Vacinas para meninas combatem o HPV (papilomavírus) causador de câncer no colo do útero, antes um flagelo feminino. Até a obesidade tem laços estreitos com a flora intestinal e, pasme, parece ser transmissível.

    A boa notícia é que existem poderosos medicamentos antifúngicos. Se Carrasco estiver certo, o que está longe de ser comprovado, uma fresta de esperança se abre para os velhos cujas biografias se reduzem a cacos.

    Seu sofrimento e a angústia de familiares criam também uma enorme oportunidade para os charlatães, salvadores da pátria (bem ou mal intencionados) e crédulos em conspirações.

    Não seria de espantar se amanhã surgissem propagandistas de panaceias não testadas contra o bolor no cérebro, como no lamentável episódio da "fosfo" contra o câncer.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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