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    Marcelo Leite

    Carne enlatada e carne podre

    15/11/2015 02h00

    Aviso: esta coluna não trata de política, mas de ciência. Não é minha intenção estragar o domingo do leitor requentando explicações malcheirosas cunhadas pela pior estirpe de cara-de-pau que já se instalou no Congresso.

    A ideia surgiu de um boletim eletrônico escandinavo que chegou com a pergunta perturbadora: por que não nos alimentamos como carniceiros? O link remetia para uma página (sciencenordic.com/could-we-eat-scavengers) que respondia a indagação incômoda.

    Cachorros engolem as coisas mais nojentas, dizia o texto. Urubus se deliciam com carcaças de animais mortos há muito tempo. Poderíamos nós, humanos, nos alimentarmos de carne podre se a cozinhássemos por um tempo suficientemente longo?

    Basta um pouco de bom senso para saber que não. Mas por quê?

    Como o bom senso não é a coisa mais bem-distribuída do mundo, fazendo muita falta em verdade nalguns dos endereços mais distintos de Brasília, nunca é demais explicar.

    Cozinhar a comida tem a grande qualidade de matar bactérias. Embora haja bilhões desses microrganismos em nosso intestino, algumas espécies e cepas são capazes de causar enorme estrago nas tripas de gente decente, que não merece isso.

    Alguns segundos ou minutos em água a pelo menos 70ºC costumam dar conta do recado. Fritar ou assar, quando se alcançam temperaturas ainda mais altas, também resolve.

    Numa carne contaminada, no entanto, não se encontram apenas germes no pleno exercício de seus poderes maléficos. As bactérias também se apresentam na forma de esporos, uma espécie de cápsula de sobrevivência em que o ser unicelular se protege de condições adversas e fica à espera de tempos melhores (renunciam ao mandato, por assim dizer).

    Para evitar que esporos presentes na carne ingerida retomem suas atividades perversas em barrigas desavisadas, precisam aumentar o tempo e a temperatura de cozimento (a pelo menos 120ºC), por exemplo numa panela de pressão.

    Cozer o alimento em latas seladas, pouca gente sabe, foi um sistema inventado para permitir que marinheiros pudessem comer carne em longas viagens pelos oceanos. Sua ausência na dieta dos navegadores, assim como a de frutas frescas, favorecia a ocorrência de escorbuto nas tripulações.

    É preciso cuidado, porém. Se o processo não for bem realizado, a contaminação prévia com a bactéria Clostridium botulinum pode fazer o consumo de carne enlatada causar botulismo, uma intoxicação capaz de levar à morte.

    Supondo que tudo seja feito de acordo com as boas práticas da culinária, por que então não grelhamos, fritamos, assamos e até enlatamos carniça? Bastaria conseguir matar todas as bactérias e seus esporos para aproveitar toda aquela proteína que, de outro modo, acabaria desperdiçada.

    Essa lógica pode ser palatável para o modo como muitos encaram as verbas públicas, achando ser possível descontaminar qualquer recurso no fogo lento de intermináveis histórias mal contadas. Mas não funciona com carne podre.

    No processo de decomposição, as bactérias produzem toxinas que são verdadeiros venenos e, pior, resistentes ao calor. Cachorros e urubus têm lá suas defesas contra elas, não a fina flor da zoologia que frequenta palácios brasilienses ou vota nos seus ocupantes.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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