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    Marcelo Leite

    Genes e inteligência, mérito e talento

    21/12/2015 02h00

    Uma discussão tão velha quanto a genética -se ela determina as diferenças de inteligência entre as pessoas- ganhou um importante adendo: depende do país. Há muito não se via argumento tão refrescante para um debate tão enfadonho.

    Essas diferenças são investigadas com recurso a estudos com pares de gêmeos idênticos (monozigóticos, ou univitelinos). Como eles carregam os mesmos genes, fica mais fácil discriminar quanto de eventuais semelhanças ou disparidades em testes de inteligência tem origem genética (herdabilidade) ou em condições socioeconômicas.

    O dispositivo recorre à comparação de pares de gêmeos que permanecem na mesma família com os que crescem em casas separadas, com renda e status social díspar (por exemplo, em caso de adoção).

    A visão oposta ao determinismo genético reza que importa mais o ambiente em que as crianças crescem. Dito de outra maneira, quando as pessoas têm acesso a boas condições de vida, as diferenças em testes de QI ou provas padronizadas tendem a se tornar independentes da herança genética, estatisticamente falando.

    Elliot Tucker-Drob, da Universidade do Texas em Austin (EUA), e Timothy Bates, da Universidade de Edimburgo (Escócia), juntaram esforços para examinar uma hipótese mais herética: que a interação entre genes e inteligência observe padrões diversos em diferentes estruturas sociopolíticas, como os Estados Unidos, de um lado, e Europa/Austrália, de outro.

    A dupla realizou o que se chama de meta-análise, vale dizer, a junção de dados de vários estudos publicados após um processo de padronização estatística. Por essa via, chegaram a amostra enormemente robusta: 24.926 pares de gêmeos, ou quase 50 mil indivíduos. O artigo, muito técnico, pode ser encontrado aqui ).

    Considerados os 24.926 pares, todos juntos, não se constatou efeito estatístico significativo, nem a favor dos genes ("nature"), nem a favor do meio de criação ("nurture"). Aí se deu o pulo do gato: dividir os estudos em dois grupos, EUA e não EUA. Descobriram-se duas realidades divergentes.

    Entre norte-americanos, a influência dos genes no desempenho em testes é tanto mais significativa quanto mais abastadas as famílias e quanto mais idade têm os gêmeos estudados. Em outras palavras, parece que o talento (como se poderia denominar o que haja de inato na inteligência) encontra condições de desenvolver-se em alguns grupos sociais, e noutros não.

    No caso de europeus e australianos, essa correlação está ausente. Os autores do estudo indicam que pode ser efeito de um acesso mais amplo a serviços sociais (renda complementar, escola e saúde de qualidade): as crianças mais talentosas de famílias menos favorecidas não veem seu potencial desperdiçado.

    É essa distinção que se perde em toda a discussão estéril, no Brasil, que opõe o mérito às ações afirmativas. Com muito mais pobreza aqui que nos Estados Unidos, além de educação pública muito pior, qualquer medida de mérito obtida com testes acadêmicos ou cognitivos vai só produzir um instantâneo dos privilégios acumulados no passado.

    O ensino público brasileiro, em resumo, é uma máquina de triturar futuros Einsteins no nascedouro.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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