• Colunistas

    Wednesday, 01-May-2024 20:32:11 -03
    Marcelo Leite

    Que fim levaram os pequineses?

    04/01/2016 02h00

    Para falar a verdade, não faço a menor ideia de onde foram parar aqueles cãezinhos peludos e disformes, de olhos esbugalhados, que não faltavam nas casas de minhas tias e tias-avós. O mais próximo de sua feiúra fofa, hoje, são os animais da raça pug, com a vantagem de que são bem mais cheirosos.

    Uma perspectiva mais perturbadora do que encarar esses animais é imaginar que todos os cães afinal, sejam parentes próximos –em sentido geográfico, pelo menos- dos pequineses. Tal é a tese do pesquisador Peter Savolainen, do Instituto Real de Tecnologia da Suécia: lobos teriam sido domesticados no leste da Ásia, possivelmente na China, entre 15 mil e 33 mil anos atrás.

    Savolainen se baseou na análise dos genes (DNA) de 58 canídeos: 12 lobos cinzentos, 27 cães de raças antigas da Ásia e da África e outros 19 de diversas raças do mundo. Ele e uma enorme equipe de cientistas chineses encontraram a maior diversidade genética entre cachorros asiáticos e, ao mesmo tempo, a maior similaridade com o DNA de lobos.

    Há muito bairrismo regional nessa questão da origem do melhor amigo do homem. O artigo científico de Savolainen foi prontamente criticado pelo conterrâneo Olaf Thalmann, da Universidade de Uppsala.

    Thalmann havia publicado em 2013 outro trabalho concluindo que a domesticação ocorrera na Europa entre 18,8 mil e 32,1 mil anos atrás. Ele aponta em reportagem de Catherine Jex que a amostra de Savolainen foi enviesada pela predominância de animais da... China.

    Essa pinimba científica lembra outra, célebre, sobre a origem do homem americano. Durante décadas vigorou o chamado paradigma de Clovis: as populações mais antigas de seres humanos teriam chegado à América não muito mais que 12 mil anos atrás, data dos restos encontrados no famoso sítio arqueológico do Novo México (EUA).

    De 30 anos para cá, surgiram vários vestígios mais antigos que isso, como os de Monte Verde (Chile) e Boqueirão da Pedra Furada (Piauí). No segundo caso, porém, ainda há quem debata a antiguidade dos achados de Niède Guidon. O fato é que o paradigma Clovis não para mais de pé.

    Dá até para entender que se ponham tanta energia e tantos recursos de pesquisa para desvendar o mistério da origem do homem americano. Mas do cachorro?

    Um dia eles já foram companheiros materialmente úteis, quando eram usados para caçar. Hoje? Não passam de muito bem-vindos comensais de nossa existência acolchoada, testemunhos ambulantes e subestimados de um passado animal que nos esforçamos por esquecer.

    Nada contra os cães, claro, que são seres muito superiores aos gatos, por exemplo. Mas me pergunto se gastar todo esse esforço na decifração do genoma completo de dezenas de cães e outros bichos não tem mais a ver com a ociosidade de centenas de institutos e de milhares de máquinas de sequenciamento de DNA adquiridas sob a promessa de que a era genômica iniciada em 2000 extinguiria todos os males do mundo.

    Talvez um dia essa promessa seja cumprida; não sei. Mas ficaria bem mais satisfeito se a ciência respondesse questões bem mais simples do que a cura do câncer, como: que fim levaram os pequineses?

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024