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    Marcelo Leite

    Para que reescrever o genoma humano?

    06/06/2016 12h20

    A natureza levou uns 100 ou 200 mil anos para burilar o mosaico de genes e pedaços misteriosos de DNA sem os quais nosso filhos não pertenceriam à espécie Homo sapiens.

    Se considerarmos que o genoma humano tem 96% de coincidência com o de chimpanzés, conclui-se que essa montagem começou pelo menos 5 a 7 milhões de anos atrás. Ou 80 milhões de anos, para quem preferir tomar em conta que partilhamos 85% de nosso DNA com os... camundongos.

    Na realidade essa jornada começou muito antes, mas convém deixar de lado a empreitada retrospectiva, porque ela não tem fim. Ou melhor, tem, mas seria preciso recuar uns 4,5 bilhões de anos e chegar aos primeiros vírus ou bactérias, nossos verdadeiros ancestrais.

    Reprodução
    Moléculas de DNA
    Moléculas de DNA

    O tempo transcorrido aparece aqui para dar uma ideia da quantidade de "trabalho" evolutivo –mutação após mutação, geração após geração– por trás do código genético da humanidade.

    Outra maneira de exprimir sua enorme complicação recorreria ao tamanho: mais de 3 bilhões de letras químicas (bases) enfileiradas em 23 pares de cromossomos. Foram gastos US$ 3 bilhões e uma década para ler e transcrever essa barafunda, com o Projeto Genoma Humano (PGH) concluído em 2003.

    Por que cargas d'água, então, agora deram de querer reescrever o que já foi chamado, não sem exagero, de Livro da Vida?

    A proposta controversa, que começou a ser debatida em reuniões fechadas como a que foi realizada na Universidade Harvard em10 de maio, veio a público na sexta-feira (3). Apareceu em um artigo na revista "Science" assinado por 25 pesquisadores, entre eles o velho lobo da genômica George Church. Esse pessoal quer dinheiro para passar a limpo o genoma. Ou seja, reescrevê-lo.

    O PGH-1 por assim dizer se dedicou a decifrar a sequência de DNA característica da espécie humana. A ideia por trás do PGH-2 –que a turma batizou em inglês como "HGP-write"– é montar um genoma novo, do zero, e pô-lo para funcionar em células cultivadas em laboratório.

    A síntese de DNA com sequência especificada já é feita, mas só com trechos de centenas ou no máximo milhares de letras. O artigo na "Science" deixa claro que, com a tecnologia de hoje, o PGH-2 sairia hoje mais caro que o PGH-1.

    Eles acham que dá para começar com US$ 100 milhões, sintetizando pedaços de cromossomos com genes de interesse para a medicina, como os relacionados com câncer. E, quem sabe, partir em seguida para um cromossomo, como o 21, um dos menores em nossas células (cerca de 50 milhões de bases).

    Com o esforço coordenado de vários laboratórios, acreditam os pais da ideia, haveria rápido desenvolvimento tecnológico, como aconteceu com o PGH-1, e os custos despencariam de forma rápida. A transcrição do genoma de um paciente pode ser feito hoje com cerca de US$ 1.000, contra os US$ 3 bilhões da façanha original.

    O PGH-1 ocasionou uma pequena revolução na medicina, mas bem menor do que se prometia para convencer autoridades e contribuintes a financiar a empreitada. Falava-se em cura do câncer e em decifrar "o que significa ser humano", mas ainda estamos longe disso. Tanto é que a turma agora quer repetir a dose.

    Em favor do PGH-2 se diz que ele abriria o caminho para aplicações biomédicas atraentes, como linhagens de células com DNA sob medida para terapias gênicas de precisão, ou para estudar em detalha a resistência a vírus e tumores. Ou, ainda, construir órgãos em laboratório para transplante.

    Os proponentes do projeto são tudo, menos bobos. Há muito dinheiro para ganhar com as tecnologias surgidas nesse gênero de projeto. Quem duvidar que dê uma olhada na lista de laços financeiros e patentes de George Church (bit.ly/1Xu1e6v).

    Decerto não é crime ter sucesso em biologia molecular e sintética, como Church, e enriquecer com isso. O espírito capitalista e empreendedor tem sido crucial para inventar e disseminar novas tecnologias de saúde.

    Ocorre que o PGH-2, se tiver sucesso com a meta ambiciosa de reescrever o genoma, abrirá também a porta para escolher caraterísticas humanas. Church e companhia avisam que não querem nem ouvir falar de modificação de células da linhagem germinativa, ou seja, que possam ser usadas para reprodução.

    Antenados para a possível reação moral (moralista?) à proposta de "brincar de deus" reescrevendo o genoma, os autores defendem dedicar uma porcentagem da verba obtida para o estudo de implicações éticas, legais e sociais do PGH-2, como já se fez no PGH-1. Melhor assim.

    Projetos "Big Science", como esse, criam modas irresistíveis para pesquisadores em busca de verbas para manter laboratórios e acabam ditando o formato dos estudos por anos ou décadas. Mas, como se baseiam em promessas tão vagas quanto exageradas, o mínimo a pedir dos projetistas é que busquem alicerçar-se no debate público antes de erguer seus vastos edifícios.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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