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    Marcelo Leite

    Ninguém presta atenção aos recordes de temperatura global

    21/08/2016 02h00

    Mariano Caravaca-4.mar.2008/Reuters
    Os 14 meses anteriores a julho de 2016 quebraram os respectivos recordes mensais de temperatura
    Os 14 meses anteriores a julho de 2016 quebraram os respectivos recordes mensais de temperatura

    Não é fácil passar ao largo do assunto mudança climática. Embora seja, a seu modo, a questão mais preocupante do mundo, com o tempo bate aquele cansaço com a sucessão de más notícias. Quem quer saber de recordes de temperatura, quando Michael Phelps e Usain Bolt estão fazendo o diabo no Rio?

    O jornalismo existe, no entanto, para chamar a atenção das pessoas para as coisas importantes em que elas não estão reparando. Por exemplo, o aquecimento global, que acaba de conquistar 15 medalhas de ouro, feito inédito em 136 anos.

    Segundo a Agência Nacional de Oceanos e Atmosfera dos EUA, a prestigiada Noaa, julho de 2016 foi não só o julho mais quente como foi também o mês mais quente registrado desde 1880. Superou a marca do recordista anterior, julho de 2015, que havia sido o ano mais quente da história, desbancando 2014 –e 2016 deve superar ambos, já se prevê.

    Todos os 14 meses anteriores a julho de 2016 quebraram os respectivos recordes mensais. Trata-se aqui da temperatura média global, aferida com a ajuda de milhares de estações meteorológicas e satélites.

    Essa marca se acha quase 1°C acima da média do século 20 e já se aproxima com perigo do sarrafo de precaução fixado em dezembro passado pelo Acordo de Paris, na 21ª conferência mundial sobre mudança do clima (a meta oficial, porém, é não ultrapassar 2°C de aquecimento até o ano 2100).

    Alguém pode argumentar que 2015 e 2016 seriam pontos fora da curva, por causa do calor extra liberado com o fenômeno El Niño. Esse aquecimento anormal das águas do oceano Pacífico faz gato e sapato do clima mundial, originando, por exemplo, estiagens incomuns na Amazônia e no Nordeste brasileiro.

    Note, contudo, que o semiárido enfrenta seu quinto ano consecutivo de seca. E que 2014, quando não houve El Niño, também foi um ano recordista. Ou que 15 dos 16 anos mais quentes ocorreram todos neste século 21 (a exceção é 1998, não por acaso outro ano de El Niño).

    Se isso tudo não configura uma tendência inequívoca, fica complicado definir o que seja tendência.

    Tudo indica que o aquecimento do Pacífico é o fator coadjuvante aqui, e não o protagonista. O papel principal fica reservado para o esquentamento adicional induzido por atividades humanas que emitem gases do efeito estufa, como o consumo de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural) e as queimadas (no Brasil satélites já detectaram 67 mil focos neste ano, 33% mais que em período igual de 2015).

    Quem só tem olhos para os ouros não demorará em disparar a pergunta fatídica: e daí?

    E daí que no Kuwait se tenham registrado 54°C de calor em julho? E daí que o oceano Ártico esteja 4°C mais quente que sua média histórica, com risco de ter sua calota de gelo derretida por completo no verão de algum dos próximos anos, e não no final do século, como se previa antes? E daí que a Califórnia esteja em chamas e a Louisiana debaixo d'água? E daí que o governo brasileiro precise gastar bilhões para socorrer nordestinos castigados pela seca no sertão?

    Alguns especialistas calculam que temos só mais cinco anos para queimar combustíveis fósseis antes que o nível prudencial de 1,5°C de aquecimento seja rompido. Só chegamos a esse ponto porque há gente demais perguntando: e daí?

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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