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    Marcelo Leite

    Relatório da Samarco mostra um desastre anunciado

    04/09/2016 02h00

    Em meio ao bafafá do impeachment, pouca gente terá lido o relatório de especialistas independentes sobre o maior desastre ambiental da mineração mundial, ocorrido há dez meses em Mariana (MG). É documento perturbador, tamanha a sucessão de falhas –se não de irresponsabilidades– que registra.

    Não ajuda, claro, que o documento divulgado na segunda-feira (29) pelaSamarco e suas controladoras (Vale e BHP Billiton) esteja disponível somente em inglês (fundaoinves tigation.com/the-report/) e recheado de termos técnicos, tenha 88 páginas e um processo bizantino de inscrição e registro para consulta.

    O diagnóstico apresentado pelos quatro experts em geotecnia de barragens se baseia, em sua essência, nas diferentes propriedades da areia e do lodo. Por causa delas, esses dois tipos principais de rejeitos produzidos pela mineração na planta de Germano precisam ser depositados em separado, mas a Samarco não observou a regra básica.

    A areia é mais leve e permeável, ou seja, adequada para drenar a água em que os rejeitos chegam ao depósito, no interior de dutos. O lodo da mineração forma uma pasta mais densa e deformável, que precisa ser depositada numa lagoa acima e atrás da areia, de modo que o excesso de líquido possa escorrer através dela e sair por galerias.

    O que segue é um resumo acanhado do desastre anunciado que a sequência de problemas em Fundão sugere para um leigo. Ela começou em abril de 2009, quando o dique inicial de terra começou a vazar.

    Outros 13 incidentes de vazamento, saturação (encharcamento da barragem), fissuras e deformação de estruturas ocorreriam de julho de 2010 a julho de 2015. Para enfrentar esses problemas, o projeto original foi modificado e um dique do lado esquerdo foi parcialmente recuado, ganhando o formato de S.

    Os rejeitos de areia continuaram a ser depositados na parte da frente e o lodo, no lago mais acima. Com o recuo, em certos trechos a areia acabou em cima de uma língua de lodo, submetida agora à carga da pilha que não parava de crescer.

    A modificação do esquema geral de drenagem exigiu que se mantivesse uma "praia" de areia com largura de 200 m entre a crista da barragem e a lagoa de lodo, para facilitar o escorrimento da água. Como a produção de rejeitos arenosos era maior, essa faixa de segurança não foi respeitada e encolheu para até 60 m, o que aumentou a proporção de água na areia, saturando-a.

    A pressão sobre a língua de lodo fez com que ela se expandisse lateralmente. Um dos peritos comparou o processo com apertar um tubo de pasta de dente, mas também se poderia pensar num disco grosso de massa de modelar pressionado com a palma da mão.

    Em cima dele havia uma quantidade imensa de areia saturada. Com o movimento da camada abaixo e a consequente variação de pressão no interior da massa arenosa, esta sofreu uma liquefação abrupta. Passou a se comportar como um fluido, perdendo toda a capacidade de conter o lodo mais acima e rompendo os diques de terra mais abaixo.

    O painel de especialistas também avaliou a possibilidade de que o pequeno tremor de terra (2,5 graus de magnitude) ocorrido 1h30min antes do desastre tenha funcionado como um gatilho. Conclusão: "[I]sso possivelmente acelerou o processo fatal que já estava bem avançado".

    Resumo: um desastre anunciado.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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