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    Marcelo Leite

    Apresentação da denúncia contra Lula repete obscuridade típica na academia

    18/09/2016 02h00

    Rodolfo Buhrer/La Imagem/Fotoarena/Folhapress
    Procurador da República Deltan Dallagnol durante entrevista coletiva da Força Tarefa da Operação Lava Jato
    Procurador da República Deltan Dallagnol dá entrevista coletiva sobre denúncia contra Lula

    Difícil dizer o que é mais penoso de acompanhar: o depoimento de Dilma Rousseff no Senado, a sessão de posse da ministra Cármen Lúcia no STF (Supremo Tribunal Federal) ou a entrevista coletiva do procurador da República Deltan Dallagnol ao denunciar Lula na Lava Jato.

    Dallagnol, para mal de seus pecados, foi o último a sequestrar a atenção do público por mais tempo do que seria necessário. Só não a perdeu por causa da relevância óbvia do que tinha a expor.

    Nada que se compare, em comprimento e aporrinhação, com as arengas nos plenários do Senado e do STF, é verdade. Em compensação, o procurador se fez acompanhar de uma apresentação Powerpoint.

    Essa é a única razão, cabe logo esclarecer, para ocupar com assunto tão enfadonho um espaço reservado às maravilhas da ciência. Ocorre que a praga das apresentações em lâminas viceja como nunca nos meios acadêmicos, onde também impera essa forma de projeção luminosa para conteúdos obscuros.

    O pior vício é usar slides demais. Contei 84 na apresentação do procurador que pode ser encontrada na rede. Perfeita manifestação concreta da máxima segundo a qual o segredo de aborrecer é dizer –no caso, mostrar– tudo.

    Uma regra básica das apresentações eficazes manda não empregar mais que uma lâmina para cada minuto disponível para a exposição. Só que a maioria dos oradores brasileiros acha que o tempo é um recurso plástico, que deve se adaptar ao volume disforme do que terá sido dito quando o discurso terminar. O pecado capital, contudo, é abusar de figuras geométricas –retângulos, círculos, setas e quetais. Na denúncia de Lula, elas abundaram.

    Ficou mais uma vez evidente que seu papel real é aplicar uma demão de verniz cartesiano sobre argumentos desconexos. Ou, pelo menos, sem o nexo causal pressuposto quando se trata de provas jurídicas.

    Considere-se o famigerado slide com 14 "evidências" contra Lula. Dispostas em bolinhas ao redor do nome do ex-presidente, com uma saraivada de setas a espetá-lo, elas deveriam corroborar as acusações contra o alvo central da Lava Jato. Nada disso.

    Uma delas servirá para exemplificar a nebulosidade dominante na exposição. Continha um único vocábulo: "expressividade". No slide que se dedica a explicar o item, porém, o enigma não se desfaz.

    O primeiro retângulo, azul, afirma em letras maiúsculas que "a expressividade do esquema só é compatível com o seu comando por Lula, triplamente beneficiado por ele".

    O segundo retângulo, em cinza, complementa: "A expressividade da PROPINOCRACIA; dos líderes partidários, dos ministros e funcionários públicos envolvidos; das empresas, grandes doadoras, envolvidas; dos valores que só na PETROBRAS chegaram a 6,2 bilhões; e da ramificação do esquema em diversos órgãos não permitem outra conclusão".

    Quem concorda de antemão com a força-tarefa da Lava Jato terá achado claríssimo, apesar da pontuação e da concordância. Mas Marcel Proust já advertiu que "cada um chama de claras as ideias que estão no mesmo grau de confusão que as suas próprias".

    Ciência e justiça servem para desfazer dúvidas com objetividade. Sem Powerpoint, por favor.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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