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    Marcelo Leite

    O Aedes está aí para provar nossa incompetência

    30/01/2017 02h00

    Lalo de Almeida/Folhapress
    É da cultura do brasileiro entrar em pânico a cada surto, em lugar de se informar antes e de se precaver
    É da cultura do brasileiro entrar em pânico a cada surto, em lugar de se informar antes e de se precaver

    Se pairava ainda alguma dúvida de que o país caminha para trás, o surto de febre amarela em Minas Gerais, que já parece avançar para outros Estados, chegou para desfazê-la. Bem-vindo ao passado.

    Essa moléstia altamente letal nunca deixou de existir no Brasil, como sabe –ou deveria saber– toda pessoa que viaja para a Amazônia ou o Pantanal. Mas qualquer um está sujeito a ignorar essa informação básica, ou não lhe dar a devida importância.

    É da cultura do brasileiro entrar em pânico a cada surto, em lugar de se informar antes e de se precaver.

    Aconteceu até com o médico Drauzio Varella, famoso como excelente escritor e pelo útil trabalho de divulgação sobre saúde na TV. Em 2004 ele bobeou e, sem renovar a vacina, cujo efeito dura dez anos, contraiu a doença na Amazônia. Quase morreu, experiência narrada no livro "Por um Fio".

    A febre amarela sempre esteve por aí, escondida no mato. O vírus, da mesma família de flavivírus ("flavum" em latim quer dizer amarelo) que inclui os causadores de dengue, zika e chikungunya, sobrevive em macacos, seu reservatório natural.

    De vez em quando pessoas que trabalham perto de florestas, ou dentro delas, são picadas por mosquitos dos gêneros Haemagogus ou Sabethes. Se derem azar de o mesmo inseto ter sugado antes o sangue de um macaco infectado, podem contrair a doença e correr risco grave de vida.

    São eventos raros. A cada ano acontece menos de uma dezena de mortes no Brasil, como as cinco registradas em 2016. É pelo menos dez vezes maior a probabilidade de um brasileiro morrer atingido por raio (1.790 casos de 2000 a 2014) do que de febre amarela.

    Até agora, pelo menos. Nem terminou o primeiro mês de 2017 e já se contam mais de 40 óbitos pela febre. Todos, segundo informações oficiais, na modalidade silvestre, ou seja, transmitidos de macacos para pessoas, e não entre humanos.

    Ninguém ainda está falando em voz alta, para não alimentar o pânico injustificado que já se alastra, mas o grande temor é que a febre amarela ressurja como epidemia urbana. Aí sim seria um grande pesadelo.

    Essa doença era um flagelo, por exemplo, no Rio de Janeiro em seus tempos de capital federal. Foi erradicada após os esforços de Osvaldo Cruz para erradicar os mosquitos Aedes aegypti que transmitiam o flavivírus entre moradores da cidade, sem participação dos macacos.

    Aedes? Esse mosquito que o país não consegue eliminar e como que desistiu de combater? O bicho por trás das epidemias de dengue, zika e chikungunya? O próprio.

    A transmissão do vírus da febre amarela em meio urbano pelos onipresentes Aedes seria um pesadelo porque aí a população estaria à mercê da iniciativa e da eficiência do poder público. E este já mostrou que, no caso do mosquito e da vacinação de apenas metade dos mineiros contra a febre amarela, que não está à altura.

    Só os governos –federal, estaduais e municipais– podem organizar e realizar um esquema rápido de vacinação para imunizar uma quantidade suficiente de pessoas nas áreas de surto. Se cerca de 80% da população estiver imunizada, calculam epidemiologistas, o surto não avança.

    Há quem defenda até que a recomendação oficial de vacinação passe a abranger áreas superpopulosas do Sudeste hoje excluídas, como Espírito Santo, Rio de Janeiro e leste de São Paulo.

    Se a coisa ficar preta, não venham depois dizer que é culpa só de governos vermelhos, ou azuis. O atraso não é de hoje, embora os Executivos e Legislativos de turno tanto se esforcem por ampliá-lo, e seria mais honesto descrevê-lo como verde e amarelo.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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