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    Marcelo Leite

    A vingança é um prato de ossos

    30/04/2017 02h00

    Tim Evanson/Flickr
    Ossos de um mastodonte levantaram a possibilidade da nova data de chegada de humanos às Américas
    Ossos de um mastodonte levantaram a possibilidade da nova data de chegada de humanos às Américas

    Arrasta-se há três décadas a polêmica sobre a época da chegada de humanos às Américas: antes ou depois de 15 mil anos atrás? O debate deu uma reviravolta nesta semana, com um estudo apontando que ela pode ter ocorrido há 130 mil anos.

    Cento e trinta mil anos? Cáspite. É muita, muita coisa.

    Por muito menos a brasileira Niède Guidon amargou décadas de menosprezo por vários de seus pares após defender que o sítio Boqueirão da Pedra Furada, no Piauí, continha vestígios humanos de mais de 40 mil anos passados.

    Se a descoberta se comprovar, a espécie humana teria chegado por aqui ainda no curso de sua própria adolescência, por assim dizer. Acredita-se, afinal, que o Homo sapiens tenha surgido na África há não mais que 200 mil anos.

    O novo sítio iconoclasta, Cerutti, nem novo é. Os americanos Kathleen e Steven Holen o escavaram a partir de 1992, quando se descobriram ossos grandes durante a reforma de uma estrada perto de San Diego, na Califórnia (EUA).

    Os ossos eram de um mastodonte (Mammut americanum), não de humanos. Estavam partidos e jaziam ao lado de pedras grandes e pequenas que, segundo o casal Holen, haviam sido usadas para quebrá-los, possivelmente a fim de chegar ao nutritivo tutano.

    Para corroborar sua hipótese, a dupla usou pedregulhos semelhantes para quebrar ossos de elefantes. As rochas grandes fizeram as vezes de bigorna, e as pequenas, de martelo. Os pedaços e marcas obtidos se revelaram comparáveis ao mastodôntico achado de Cerutti.

    Não foi possível, contudo, extrair material genético do material ósseo, que não continha mais traços de colágeno. Isso teria ajudado na datação dos restos.

    Como alternativa, empregou-se um método baseado no decaimento de urânio, que perde partículas nucleares a uma taxa conhecida. Assim se estabeleceu a antiguidade de 130 mil anos, com margem de erro de cerca de 10 mil anos para mais ou para menos.

    O artigo científico dos Holens saiu quinta-feira (27) no periódico britânico "Nature". A revista também publicou reportagem e um comentário da arqueóloga Erella Hovers, da Universidade Hebraica de Jerusalém, para debater as objeções possíveis ao estudo (e, no caso de Hovers, rejeitá-las e endossar o trabalho).

    Como não há vestígios diretos da presença de humanos no sítio, além das marcas nos ossos que lhes foram atribuídas, não se descarta a possibilidade de que ossos e pedras tenham sido reunidos no mesmo local por fenômenos naturais. Por exemplo, uma torrente de água.

    Sempre foi esse o senão levantado contra o achado de Guidon em Pedra Furada: não se exclui a possibilidade de que o carvão e as pedras que ela interpreta como uma fogueira estruturada por mãos humanas tenham sido dispostos no sítio por uma enxurrada.

    A resistência à tese de Guidon sobre a antiguidade do homem americano pode bem ter decorrido de se tratar de uma pesquisadora de país periférico. Não é o caso dos Holens, americanos de Dakota do Sul que têm como colaboradores cientistas de instituições prestigiadas como a Universidade de Michigan.

    Pode ser que eles venham a padecer com o mesmo ceticismo enfrentado por Guidon. Se prevalecerem, a brasileira estará vingada.

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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