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    Marcelo Leite

    Incêndios florestais reduzem a cinzas dúvidas sobre reforma da atmosfera

    15/10/2017 02h00

    No final de junho passei de carro pela região de Pedrogão Grande, em Portugal, poucos dias depois do incêndio florestal que matou 64 pessoas encurraladas na rodovia. Uma paisagem dantesca, morros e mais morros de pinheiros e eucaliptos calcinados, placas de trânsito derretidas.

    Algo similar se vê agora nas imagens da Califórnia, com o acréscimo de bairros residenciais inteiros carbonizados. Fotografias e vídeos tomados do alto por drones revelam o arruamento curvilíneo de subúrbios americanos transformados em queloides de cinzas.

    Tempestades de fogo varrem as regiões vinícolas de Sonoma e Napa, que empregam 100 mil pessoas e geram US$ 27 bilhões de produto para a economia californiana. Até sexta-feira (13) de manhã, 31 pessoas tinham morrido; centenas estavam desaparecidas.

    A ação humana parece ter sido determinante para essas tragédias. Não tanto as medidas emergenciais, sobre as quais pode haver muita discussão (na quinta-feira, 12, o relatório da Comissão Técnica Independente foi entregue ao Parlamento português), e sim a mudança do clima, que insuflou as chamas com ventos mais fortes, quentes e secos.

    Os dois casos trazem à mente o enredo do romance "A Estrada", de Cormac McCarthy. O livro, embora não mencione aquecimento global, compõe um retrato ficcional poderoso de um dos impactos que a mudança climática pode infligir à humanidade (tanto no sentido de gênero humano quanto no de respeito e dignidade que deveriam existir em um de nós).

    As imagens incendiárias também evocam o debate sobre geoengenharia –a ideia de interferir com o clima da Terra para contrabalançar o aquecimento global. Mesmo quem sempre desconfiou da noção de que tecnologia resolve tudo já começa a admitir que, talvez, não reste outra saída para evitar o pior.

    Os compromissos voluntários de cada país no Acordo de Paris ou serão descumpridos ou, mesmo que todos os cumpram, terão uma chance mínima de permitir que se alcance a meta principal do tratado: evitar que a temperatura global ultrapasse 2°C (e de preferência fique abaixo de 1,5°C).

    Também na quinta-feira (12) se encerrou na Alemanha uma reunião de quatro dias para debater a questão a sério, a Conferência Engenharia do Clima, organizada pelo Instituto de Estudos Avançados de Sustentabilidade de Potsdam.

    Debateram-se ali duas modalidades principais de geoengenharia: remoção de dióxido de carbono (abreviada CDR em inglês) e manejo de radiação solar (SRM).

    A Estrada
    Cormac McCarthy
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    No primeiro caso se encaixam captura e estocagem de carbono em energia de biomassa (BECCS), sequestro de carbono no solo e reflorestamento. São coisas sensatas de fazer, com pouco risco de efeitos não pretendidos e enorme potencial no Brasil.

    Bem mais controversa é a vertente SRM, medidas mirabolantes como encher a atmosfera de partículas para barrar parte da luz do Sol. Ambientalistas abominam, em geral, essa húbris tecnocientífica, mas quem sabe ao certo se um dia a humanidade não precisará reformar a natureza do clima para consertar o que desarranjou?

    marcelo leite

    É repórter especial da Folha,
    autor dos livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado' (Unicamp).
    Escreve aos domingos
    e às segundas.

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