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    Marcelo Miterhof

    A armadilha da parcimônia

    07/03/2013 03h00

    Um dos valores morais que mais prezo é a parcimônia. Como o conhecimento humano é limitado, mesmo potente, ele não elimina o desconhecimento. Assim, a parcimônia, sem ser interdição à realização das coisas, confere uma saudável dose de dúvida sobre nossas convicções e ações.

    Por exemplo, não sou militante das causas ambientais. Mas desde criança aprendi facilmente hábitos como não deixar lâmpadas e aparelhos ligados sem necessidade. Mais tarde, a poupança, ao menos para quem não tem renda baixa, mostrou-se algo que dá estabilidade à vida, o que me faz não ser perdulário.

    Em razão disso, há quem considere incoerente minhas crenças macroeconômicas, que defendem que o Estado deve, por meio do gasto público, minorar os impactos adversos do ciclo de negócios. Ou seja, a receita para combater crises é a contrária da pregada pelos economistas ortodoxos, que enfatizam ajuste fiscal, controle estrito da inflação, flexibilização de leis trabalhistas etc.

    De fato, há nisso algo paradoxal. A explicação para isso foi dada por Keynes, que mostrou que a macroeconomia não pode ser reduzida totalmente aos fundamentos do comportamento microeconômico.

    Foi Hélio Schwartsman quem me apontou que isso não se restringe à economia. Em sua coluna de 11/10/2012 no site da Folha, ele mostrou que a emergência -propriedade de sistemas complexos que faz com que o todo tenha características que não se verificam nas partes- é um fenômeno verificado em diferentes ciências.

    Um exemplo é o avião: nenhuma das partes é capaz de voar por si só, mas o todo, sim. Um feixe de neurônios tem propriedades que não se veem em neurônios isolados. O córtex, em interação com outras partes do encéfalo e do corpo, apresenta características, como a consciência, que não há em feixes de neurônios.

    Nas ciências naturais, mesmo que ainda não se saiba a razão de uma emergência, não há dúvida da sua existência. Não se tenta reduzir o genoma ao gene.

    Ao contrário, nas ciências sociais, é comum falar de família ou mercado como se fossem composições indistintas de seus indivíduos.

    Na economia moderna, a emergência tem causa conhecida, ainda que não amplamente aceita, dada pela moeda. Ativo central das relações econômicas, emitido pelo Estado e cujo valor é fiduciário (não há lastro), a moeda e o crédito são os responsáveis por alavancar a economia com rapidez se as expectativas são de demanda para as empresas.

    Por outro lado, quando há pessimismo, o refúgio que os agentes encontram na moeda como reserva de valor faz com que a reversão do ciclo também seja mais aguda, pois esse é um ativo que não necessita de trabalho para ser produzido (seu custo de produção é ínfimo).

    A economia monetária de produção ressalta duas características da emergência: alavancar a realidade, fazendo coisas surgir, e também deixar os sistemas mais voláteis.

    A divergência existe porque a ortodoxia não reconhece tal propriedade da moeda, que é tratada como neutra. Quer dizer, ela facilita as trocas, mas em essência uma economia monetária não se diferencia de uma feira de escambo.

    Se preços e salários são livres, o mercado se ajusta até obter o pleno emprego. A poupança agregada é fruto da abstenção de consumo da sociedade, em vez de ser o resultado final (a emergência) do processo de geração de renda desencadeado pelo investimento. Empreendedorismo e propensão a poupar são os principais determinantes do dinamismo econômico. O governo não deve interferir na economia para tentar mudar isso, pois o resultado somente seria inflação. Como uma dona de casa, ele não deve gastar mais do que ganha (arrecada).

    Keynes, porém, pontuou que preços e salários são rígidos para baixo. Diante disso, os economistas ortodoxos propõem as reformas micro como a forma de adequar a realidade à sua teoria, tentando criar as condições para que o comportamento racional prevaleça, como na ideia do homo economicus, aquele perfeitamente informado, que busca seus interesses de modo preciso.

    Os heterodoxos buscam lidar com as possibilidades e os riscos que a emergência traz. O papel contracíclico do Estado é crucial: gerar deficit quando os negócios estão fracos e conter a demanda no aquecimento. Na dúvida, é bom ter em conta que errar quando a economia esfria tem efeito pior (desemprego) do que no caso oposto, cujo malefício é apenas a inflação.

    É o caso de ser parcimonioso com a parcimônia. Exagerada e deslocadamente, ela produz sofrimento sem necessidade.

    marcelo miterhof

    Escreveu até abril de 2015

    É economista do BNDES. O artigo não reflete necessariamente a opinião do banco.

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