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    Marcelo Miterhof

    Ideias a priori

    23/10/2014 02h00

    Estou lendo o livro "Seven Bad Ideas: How Mainstream Economists Have Damaged America and The World" (Sete ideias ruins: como os economistas convencionais prejudicaram os EUA e o mundo), do jornalista Jeff Madrick.

    Seu intuito político é defender que a partir dos anos 1970 o liberalismo e a desregulamentação financeira elevaram a desigualdade e reduziram o ritmo do desenvolvimento em relação ao ocorrido no pós-Guerra.

    Para isso, discute o conhecimento econômico, mostrando que ideias populares, como "a mão invisível do mercado", embora engenhosas, são incoerentes com a realidade.

    Algumas dessas "ideais ruins" serão tratadas nas próximas semanas. Hoje, o objetivo é falar de algo que o livro evoca: a capacidade humana de criar modelos para lidar com a realidade e como isso impacta o conhecimento, em particular o econômico.

    O filósofo Immanuel Kant tratou disso no conceito de "ideias a priori". O ser humano se distingue pela capacidade de interromper uma ação, perceber as relações e analisar se é possível agir de outra forma. Esse poder de generalização, de identificar o que é principal, permite criar modelos para o entendimento da realidade. Assim, um princípio não é o início, mas a conclusão de uma experiência. Só que a partir de então tal modelo será usado "a priori" para guiar as ações.

    O ser humano não escapa desse poder de mediar a realidade e criar modelos. Com frequência, não é preciso mais do que um fiapo de realidade para que seja posta em ação, gerando uma profusão de modelos e idealizações.

    Esses "preconceitos" são úteis, pois frequentemente não há tempo para formar os conceitos. São a eles que recorremos, por exemplo, ao andar numa rua deserta ou ao escolher um restaurante num lugar desconhecido. Como na célebre frase de Oscar Wilde, "só os tolos não julgam pela aparência".

    Entretanto, na sua acepção mais comum, a de generalizações indevidas e estigmatizadoras, os preconceitos mostram que tal capacidade é falível. O risco é ficar aferrado a ideias ruins.

    Assim, na ciência, para que o conhecimento não seja só um choque de opiniões, é necessário estabelecer critérios racionais e, principalmente, empíricos que permitam a convergência dos entendimentos.

    Novas formas de compreender a realidade sempre surgem. Foi o que aconteceu quando Copérnico percebeu que as mudanças de posição dos astros no céu não eram coerentes com a hipótese de um observador parado.

    Os novos modelos precisam ser testados. Como diz Kant, se "deve obrigar a natureza e responder a suas perguntas". Foi o que fez Galileu: ao jogar uma pedra do alto do mastro de um navio em movimento, verificou-se que um observador no convés a vê cair em linha reta, pois ela acompanha o barco até cair no mar. Isso derrubou a tese de que, se a Terra não estivesse parada, nuvens e pássaros seriam deixados para trás.

    Isso implica que o conhecimento humano é provisório. Mesmo as teorias mais sólidas e proveitosas, como a física newtoniana, podem ser substituídas.

    É verdade que esse não é um processo estritamente racional e empírico, que ocorra sem resistências. Em geral, as mudanças de paradigmas científicos se consolidam somente quando uma nova geração de pesquisadores se torna dominante.

    Na economia, porém, disputas teóricas raramente são resolvidas. Por um lado, há uma dificuldade de estabelecer experimentos que sejam inequivocamente capazes de isolar as características que se deseja testar. A poupança é um requisito prévio do investimento ou este multiplica a renda e, assim, gera a poupança que o financia? Por outro, interesses e convicções ideológicas enviesam a objetividade dos economistas.

    Livros como o de Madrick mostram que a teoria e as recomendações dos economistas costumam ignorar tal dificuldade, destacando o caráter algo mítico de certas ideias econômicas: têm estrutura conceitual e sistemática, mas são descoladas da realidade. Pena que não são capazes de mudar o exercício da profissão.

    Isso não torna a economia imune ao esforço do conhecimento, de olhar para a realidade para identificar padrões e testar hipóteses. Porém é preciso ter consciência de seus limites, buscando entender as distintas razões e os interesses em jogo.

    *

    Por falar em forjar entendimentos, fico imaginando como seria a cobertura da grande imprensa se a crise hídrica de São Paulo ocorresse sob um governo do PT.

    marcelo miterhof

    Escreveu até abril de 2015

    É economista do BNDES. O artigo não reflete necessariamente a opinião do banco.

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