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    Marcelo Miterhof

    Demorando

    22/01/2015 02h00

    A atual legislatura federal vai se encerrar nos próximos dias deixando uma dívida com o Brasil e consigo mesma.

    Em 2 de abril de 2013, a "PEC das Domésticas", de autoria do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), foi transformada na emenda constitucional nº 72/2013, visando a acabar com a diferenciação dessas profissionais em relação aos demais trabalhadores. A coluna "Demorô!", de 28/3/2013, aplaudiu o Congresso Nacional pela iniciativa, que teve importantes efeitos imediatos.

    Entre outras coisas, a jornada de trabalho foi limitada a 44 horas semanais. As horas extras passaram a ter garantia de uma remuneração 50% superior. Foi explicitamente vedada a diferenciação de salários, critérios de admissão e exercício de funções em razão de cor, gênero, estado civil ou idade.

    No entanto, passados quase dois anos, não foram regulamentados outros direitos, cruciais para acabar com a insidiosa discriminação contra uma categoria profissional: o FGTS, o seguro-desemprego, a remuneração do trabalho noturno superior ao diurno, o seguro por acidente de trabalho etc.

    É isso que mostra o texto "Os direitos das trabalhadoras domésticas e as dificuldades de implementação no Brasil: contradições e tensões sociais", de Magda Biavaschi, desembargadora aposentada do TRT4 (www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2015/01/Direitos-das-trabalhadoras-dom%C3%A9sticas.pdf).

    Esse é um padrão da história nacional. A escravidão atravessou quase todo o século 19. Mesmo já sendo considerada imoral, seu fim era tido como "inviável". No século 20, a desigualdade se manteve profunda, mesmo com a industrialização, que criou oportunidades de inclusão, mas foi limitada por não ter priorizado o consumo popular. A preocupação em universalizar a educação básica só começou a ser efetiva com a Constituição de 1988, cem anos após a Abolição. O grande contingente de domésticas é mais uma sequela da desigualdade ancestral.

    Agora, finalmente a sociedade brasileira rechaçou o prolongamento da jornada de trabalho das domésticas. É o que Karl Marx chamava de "mais-valia absoluta", uma exploração do trabalho tipicamente pré-capitalista, que, em vez de se basear no aumento de produtividade, se dá pelo esgotamento físico do trabalhador.

    Todavia, a equiparação dos direitos tem travado nos impactos pecuniários sobre os patrões. A alegação é que, por não ser uma atividade que vise ao lucro, seria inviável (o termo se repete) para as famílias suportar tais encargos. Por esse prisma, deveriam ser limitados os direitos dos funcionários públicos ou dos empregados em ONGs.

    Há ainda quem diga que isso seria de interesse das domésticas, que temeriam a perda de seus empregos. Porém não é o que diz sua representação de classe.

    Não é disso que se trata, mas há um fundamento econômico nessa dificuldade. Esse é um serviço de baixa produtividade, que tem uma alta propensão a gerar exploração.

    Nos países desenvolvidos, o trabalho doméstico existe, mas é caro porque a oferta desses profissionais é relativamente pequena.

    A conjugação de redução da desigualdade -gerando crescimento e ganhos de produtividade- com a devida regulamentação de diretos pode fazer o país superar mais uma etapa da pesada herança escravista.

    A equiparação definitiva dos direitos trabalhistas é um sinal político de que o Brasil precisa encontrar caminhos para seguir avançando, que não cola mais o discurso da inviabilidade, cujo resultado prático é garantir a uma elite "docemente constrangida" a possibilidade de continuar se beneficiando da exploração do trabalho alheio.

    Vale notar que a ausência da previsão legal de direitos como o seguro-desemprego ou a remuneração adicional do trabalho noturno não faz com que seu ônus deixe de existir, mas sim que ele recai sobre as domésticas, que ficam sem a proteção existente para os demais profissionais formalizados.

    Se há a preocupação com os possíveis efeitos maléficos sobre o emprego doméstico, é melhor que o Estado, ao menos por um tempo, divida o custo adicional com o empregador. Não dá é que a parte mais fraca continue arcando com esse ônus.

    Que a próxima legislatura não demore a corrigir a falta desta que se despede.

    marcelo miterhof

    Escreveu até abril de 2015

    É economista do BNDES. O artigo não reflete necessariamente a opinião do banco.

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