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    Marcelo Miterhof

    Minha tentativa de adoção

    05/02/2015 02h00

    No dia 26, nasceu minha segunda filha, encerrando uma jornada de seis anos com minha mulher tentando engravidar e adotar. A ideia original era ter pelo menos uma cria de cada jeito. Mas desistimos da adoção. Tal relato é o tema de hoje.

    Por causa da idade, a tentativa inicial era engravidar naturalmente. Diante da dificuldade, passamos a buscar a habilitação para a adoção.

    Procuramos um grupo de apoio à adoção perto de casa, o que foi uma experiência animadora. Um psicólogo judicial destacou que a prioridade pública é conseguir famílias para as crianças, e não filhos para os candidatos a pais. O desejo dos adotantes é fundamental para as coisas funcionarem. No entanto, quanto mais restritivo ele for –em termos de idade, ausência de doenças, sexo ou cor–, mais demorado será. Vale refletir: quem sabe uma criança mais velha? Ou um grupo de irmãos?

    Queríamos um bebê sem doenças graves incuráveis, o que basta para tornar a espera longa, porém isso poderia ser reavaliado durante a habilitação.

    O diabo foi que até ela ser concluída foram quase dois anos desde a reunião informativa inicial.

    Na Vara da Infância de onde residimos, antes de dar entrada na documentação para a habilitação, é preciso participar de três encontros de grupos de apoio, cuja periodicidade é mensal. É uma exigência útil. Só que na reunião informativa foi dito que somente seis meses depois seria possível começar a frequentá-los de forma a valer para seu cumprimento. A alegação era falta de vaga.

    Mesmo com dezenas de grupos na cidade, apenas três contavam oficialmente. E não estavam lotados. Como funcionam independentemente das regras da habilitação, decidimos ir a reuniões de um deles, o que foi possível sem problema.

    O objetivo era retardar a entrada oficial dos documentos para a habilitação. Assim, as estatísticas de desempenho melhoram, embora não correspondam à realidade.

    Outro exemplo foi a demora de quatro meses para ser concluído o relatório da visita de 20 minutos do assistente social. Mesmo o juiz extrapolou o tempo que tinha para deferir ou não a habilitação e, quando o fez, colocou a data do primeiro dia de prazo.

    Claro, o Estado precisa avaliar com cuidado as pessoas para quem serão entregues crianças que já enfrentam uma situação de abandono ou risco. Ainda assim, é quase desnecessário lembrar o quanto essas crianças são prejudicadas por tamanha demora numa etapa preliminar da adoção.

    O segundo problema foi que no meu Estado a Justiça ainda permitia, embora o sistema de assistência social dificulte, a adoção consensual: pais biológicos que querem dar o filho para a adoção de um determinado casal ou pessoa. Nesse caso, a habilitação pode ser agilizada.

    Em outros lugares isso é proibido em razão, por exemplo, do risco de comércio. Sou testemunha disso. Por um advogado, conhecemos uma jovem que já tinha dado um bebê à adoção consensual e estava grávida novamente. Em troca, queria uma ligadura de trompas. Dissemos que por lei não poderíamos pagar por isso. Mas era possível orientá-la a procurar no SUS.

    Ao nascer, o bebê precisou de dez dias de internação com a mãe para amamentá-lo. Apesar de nossas visitas e do acerto dos procedimentos, os pais desistiram na última hora. Como não nos avisaram, fomos até sua casa para ouvir o que não queríamos acreditar. Vendo a criança que já tinha como filho, não posso garantir que, se tivesse ocorrido, teria recusado um pedido de dinheiro.

    A adoção consensual deveria acabar de vez. Soa como atalho para quem é capaz de acionar uma rede de relações, em particular via advogados da área. Porém, além do risco de comércio, é injusta com os demais adotantes e não traz ganho para a criança. Seu caso mais comum, o de bebês, tem adoção rápida.

    Se os pais biológicos não querem criar um filho, devem entregá-lo ao Estado, que o destinará à adoção conforme as filas de espera. Havendo agilidade, todos (crianças, pais biológicos e adotivos e a sociedade) são atendidos.

    Conheci ótimos profissionais. O sistema tem várias coisas boas. Contudo, minha experiência ruim não deve ser tão rara.

    Foi a fertilização in vitro que acabou nos dando nossas filhas. A elas, a recém-chegada Rosa e Dolores, dedico a coluna. E também ao filho que chegamos a ter, a quem desejo que esteja muito bem com a família que decidiu se esforçar para ficar com ele.

    marcelo miterhof

    Escreveu até abril de 2015

    É economista do BNDES. O artigo não reflete necessariamente a opinião do banco.

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