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    Marcelo Miterhof

    Em causa própria

    02/04/2015 02h00

    Depois de dois anos e sete meses, faço minha despedida da coluna. O tempo foi profícuo intelectual e pessoalmente.

    A periodicidade semanal exigiu uma constante atenção para identificar temas e o esforço de refletir e pesquisar sobre eles. Minhas duas filhas nasceram no período. Foi a chegada da mais nova, que está com dois meses de idade, que me fez decidir por dar uma parada. Com duas meninas pequenas, ficou impraticável dispor do fim de semana para escrever. Vou sentir falta e um certo alívio.

    O desejo que moveu a coluna foi o de viver numa sociedade mais equilibrada. Ele se expressou, entre outras maneiras: ao defender as iniciativas de distribuição de renda ou a necessidade de uma tributação mais equitária (e eficiente); ao mostrar que o crescimento não se caracteriza pelo equilíbrio e que tal idealização significa limitá-lo, a prejuízo dos mais pobres; e na preocupação com as liberdades, por exemplo, ao tratar do racismo e dos direitos civis de gays e prostitutas.

    Esse desejo não deriva de nenhuma generosidade especial, mas do entendimento de que o bem comum não somente inclui a mim como é parte importante do meu bem-estar. É o interesse próprio que me guia.

    Quero sair na rua com tranquilidade e deixar que minhas filhas o façam desde cedo. Quero viver numa cidade e num país diversos, com uma ampla disponibilidade de serviços e identidades culturais, em que as relações profissionais, de amizades, de casamento, entre outras, se pautem pela liberdade etc.

    Isso não é possível, por exemplo, se a polícia faz revistas baseadas em vestimentas e cor da pele ou invade domicílios nas favelas sem seguir as leis que valem para bairros ricos. É inviável quando os trabalhadores braçais, que são fundamentais para a produção dos bens e serviços de que usufruo, ganham 5% ou 10% da renda que eu e meus pares da elite recebemos. Tamanha desigualdade não favorece a liberdade de escolha no estabelecimento dos vínculos pessoais.

    Não se trata de defender uma sociedade plenamente igualitária. É desejável que se tenha espaço para um egoísmo, que põe na balança os interesses imediatos e individuais, e para o esforço de quem busca prosperar.

    A competição favorece a eficiência. Contudo, se na Europa pode fazer sentido discutir os limites do Estado de Bem-Estar Social, no Brasil a luta é por sua estruturação básica.

    O diabo é que num país com uma brutal herança escravista, ainda que os brasileiros de hoje não tenham responsabilidade nisso, é mais difícil combater a desigualdade e construir a nação: universalizar a educação e ter perseverança para seguir aumentando sua qualidade, combater a corrupção, favorecer o transporte coletivo ao privado, deixar de ter empregadas domésticas ou pagar mais pelos seus serviços profissionais etc. É duro até mesmo obter amplo respeito às leis de trânsito, um esforço coletivo que traz ganhos tão evidentes a cada um.

    Não é fácil mudar velhos hábitos, trocar interesses de curto prazo por um às vezes distante e pouco palpável bem comum, e nem sempre o crescimento econômico ocorre para ajudar a criar novas perspectivas.

    E, claro, além das diferenças de interesses imediatos, é grande a divergência de opinião sobre como superar essas dificuldades. Por isso, espero que a democracia brasileira desta vez sobreviva ao teste pelo qual está passando e saia fortalecida.

    Agradeço à Folha e a seus profissionais pelo nobre espaço. Aos leitores, pelo debate proveitoso e cordial.

    Correndo o risco de esquecer alguém, agradeço a amigos que em distintos assuntos e momentos leram as versões iniciais dos artigos, debateram os conteúdos e me obrigaram a ter paciência para rever os textos e torná-los mais claros e objetivos (por óbvio, isentando-os das deficiências que restaram): Ana Cláudia Borja, José Antônio Pereira de Souza (o Japs), José Aparecido Ribeiro, Luis Otávio Reiff, Matías Vernengo, Rafael Oliva e Thomaz Guedes. Pela frequência, faço um agradecimento especial a Erika Araújo e Felipe Silveira Marques.

    Felicidades a todos!

    marcelo miterhof

    Escreveu até abril de 2015

    É economista do BNDES. O artigo não reflete necessariamente a opinião do banco.

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