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    Marcelo Viana

    Maioria dos calculadores prodigiosos é, na verdade, ruim de matemática

    26/05/2017 02h00

    Lula Marques/Folhapress
    Pedro Dão dos Santos (na foto, com 14 anos) fazia contas matemáticas complexas de cabeça
    Pedro Dão dos Santos (na foto, com 14 anos) fazia contas matemáticas complexas de cabeça

    A matemática costuma ser chamada "ciência dos números" e creio que a maioria das pessoas pensa que o trabalho e diversão do matemático é fazer contas. Isso é uma simplificação grosseira e, aqui entre nós, costuma deixar os matemáticos um pouco incomodados.

    A disciplina lida com muitas noções fundamentais –forma, tamanho, movimento, conjunto, simetria, estrutura e outras–, o número é apenas uma delas. Anos atrás, quando a declaração do imposto de renda ainda era no papel, e a gente mesmo tinha de fazer as contas, ganhei o gentil convite de um vizinho para ajudá-lo. Acho que ele nunca entendeu por que não dei pulos de alegria.

    Regularmente, surgem indivíduos com capacidade fenomenal para fazer, de cabeça e com grande velocidade, cálculos longos e complicados: multiplicações e divisões de números com muitos dígitos, cálculo de potências, raízes e até logaritmos. A impressão causada por essas proezas é tal que no passado muitos desses indivíduos eram apresentados publicamente como atrações circenses. Eles costumam exibir outras habilidades, como identificar rapidamente o dia da semana de datas longínquas ou estimar com precisão áreas e volumes só de olhar os objetos. É um talento raro, surpreendente e misterioso. E tem pouco ou nada que ver com a matemática.

    É verdade que alguns matemáticos famosos também foram calculadores excepcionais. Aos três anos de idade, Carl Friedrich Gauss corrigia a contabilidade do pai. E André Marie Ampère, pioneiro da eletricidade, fazia longos cálculos mentais aos quatro: tinha aprendido as regras das operações sozinho, brincando com pedrinhas. Mas não é por isso que foram grandes e, em todo caso, não chegavam nem perto de muitos calculadores amadores.

    Um dos primeiros casos registrados é o do africano Thomas Fuller, nascido em 1710. Sequestrado e levado como escravo para os Estados Unidos, Fuller nunca aprendeu a ler ou escrever, mas era um calculador extraordinário. Multiplicava mentalmente, com facilidade, números de nove dígitos. Quando tinha 70 anos, 17 dias e 12h, perguntaram-lhe quantos segundos já tinha vivido. A resposta demorou um minuto e meio: 2.210.500.800 segundos. Alguém conferiu a resposta com papel e lápis e obteve um número menor. Fuller esclareceu: "Sinhô esqueceu ano bissexto." Viveu até os 80 e seu exemplo foi usado pela causa abolicionista.

    Aos seis anos, o americano Zelah Colburn, nascido em 1804, demonstrava poderes tão notáveis de cálculo mental que foi levado em turnê pelos Estados Unidos e pela Inglaterra. Era capaz de dizer em poucos segundos quanto é 8 elevado à 16ª potência (dá 281.474.976.710.656) ou a raiz cúbica de 268.336.125 (645). Os amigos pagaram seus estudos no Liceu Napoleão, de Paris, e na Westminster School, de Londres. No entanto, com a educação, seus poderes foram desaparecendo, e Colburn morreu no anonimato aos 36 anos de idade.

    Outro caso famoso é o do inglês George Parker Bidder, nascido em 1806. Também aprendeu aritmética sozinho, brincando com bolas de gude. Uma das suas especialidades eram os juros compostos: com dez anos calculou de cabeça, em menos de dois minutos, o juro de 11.111 libras aplicadas à taxa de 5% durante 11.111 dias. Mas em suas apresentações respondia a todo tipo de perguntas do público. Qual é o número cujo cubo menos 19 multiplicado pelo seu cubo é igual ao cubo de 6? Resposta instantânea: 3. Os amigos também financiaram os estudos de Bidder. Ao contrário de Colburn, foi bem sucedido, tornando-se um engenheiro muito respeitado, e manteve os seus poderes de cálculo até a morte, em 1878. Tinha mais de 50 quando desenvolveu um método para calcular logaritmos mentalmente: demorava menos de quatro minutos para tratar números de seis dígitos.

    O professor John Wallis, da Universidade de Oxford, também já estava na meia idade quando decidiu treinar sua capacidade para fazer cálculos complexos, por pura diversão. Algum tempo depois era capaz, por exemplo, de calcular a raiz quadrada de um número de 53 dígitos: demorava um mês para fazer a conta de cabeça e então escrevia o resultado.

    No Brasil, a Folha mostrou em 2000 o talento de Pedro Dão, 10 anos, do interior de Goiás, que fazia "as contas na parede da cabeça". Era um dos 14 filhos de um casal de agricultores e convencia clientes a comprar seus picolés desafiando-os a responder perguntas matemáticas. Calculava raízes quadradas e cúbicas e potências de números com até sete dígitos. Pedro cresceu e avançou pouco nos estudos. Aos 23, era vendedor de sapatos no interior da Bahia, revelou o repórter Antonio Gois, o mesmo da matéria de 2000.

    Apesar de inúmeros estudos científicos, continua sendo um mistério o que está por trás destas proezas mentais. As próprias pessoas que realizam cálculos tão complexos têm dificuldade para explicar como fazem. Fica claro que memorização tem um papel fundamental: memória fora de série é uma das poucas coisas que essas pessoas têm em comum. Além disso, o desempenho depende fortemente de treinamento constante e de foco total no cálculo mental. Talvez por isso, a educação formal tenda a destruir esses poderes.

    Uma das pessoas que pesquisaram estes temas no século 19, o reverendo H. W. Adams, conta em um artigo que em 1846 pediu a Tomas Henry Safford, de 10 anos, que multiplicasse 365.365.365.365.365.365 por 365.365.365.365.365.365. O menino "começou a rodopiar pela sala como um pião, puxando a bainha das calças até os joelhos, revirando os olhos, por vezes falando, outras vezes sorrindo e, de modo geral, parecendo estar em grande sofrimento". Ao final de um minuto, Safford escreveu a resposta (correta): 133.491.850.208.566.925.016.658.299.941.583.255. Um computador moderno seria mais rápido, mas muito menos interessante de assistir.

    Em todo o caso, tais estudos pertencem ao domínio da psicologia e não da matemática. A maioria destes calculadores prodigiosos é, na verdade, muito ruim de matemática: têm pouca ou nenhuma intuição para noções cruciais como espaço, forma ou estrutura e, mesmo os números, eles manipulam sem realmente entenderem.

    Do mesmo jeito, me entristece confessar que, quando se trata de fazer contas, os matemáticos não são muito melhores do que a maioria das pessoas. Aliás, lembrando como alguns dos meus colegas se atrapalham na hora de dividir a conta do restaurante –quase sempre em benefício próprio, o que constitui um grande mistério para mim–, talvez sejamos até um pouco piores que a média.

    marcelo viana

    Matemático e diretor-geral do Impa, é ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France. Aqui, mostra como a matemática pode transformar vidas e ser divertida. Escreve às sextas-feiras.

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