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    Marcelo Viana

    Quando gênios conversam: Poincaré e a origem dos 23 problemas de Hilbert

    04/08/2017 02h00

    Wikimedia Commons
    O matemático David Hilbert
    O matemático David Hilbert

    A matemática do final do século 19 e início do século 20 foi dominada por duas figuras gigantescas: o francês Jules Henri Poincaré (1854 - 1912) e o alemão David Hilbert (1862 - 1943). Como pensadores e cientistas, os dois não poderiam ser mais diferentes.

    Poincaré era o intuitivo curioso, com interesses universalistas. Trabalhou na maioria das áreas da matemática, bem como em física, engenharia, filosofia e muito mais. Para ele, a descoberta sempre foi muito mais importante que o rigor. Deixou vários resultados sem demonstração e também algumas "demonstrações" não convincentes.

    Em praticamente todos os casos, as demonstrações acabaram sendo dadas ou corrigidas posteriormente por outra pessoa, provando que a fantástica intuição de Poincaré estava correta.

    Hilbert era o formalista metódico, para quem o rigor era prioritário. Liderou o esforço realizado nas primeiras décadas do século 20 para assentar os raciocínios matemáticos em bases lógicas sólidas, evitando as contradições e paradoxos que surgiam em áreas como a teoria dos conjuntos.

    O "Programa de Hilbert" é um plano formulado em 1920 para tentar provar que todas as afirmações matemáticas podem ser deduzidas de um pequeno número de sentenças intuitivamente verdadeiras, chamadas axiomas, usando argumentos lógicos que nunca conduziriam a contradições.

    Os dois homens encontraram-se pela primeira vez em 1886, durante uma visita de Hilbert a Paris. Em carta ao colega Felix Klein (1849 - 1925), ele deixou registrada sua opinião sobre o francês: "Ele dá a impressão de ser muito jovem e nervoso. Mesmo depois de termos sido apresentados, não parece ser muito amigável. Mas acredito que isso seja devido à sua aparente timidez, que ainda não pudemos ultrapassar devido às nossas dificuldades com os idiomas."

    Tanto quanto sabemos, o encontro seguinte só teria lugar 14 anos depois, no segundo Congresso Internacional de Matemáticos (ICM, na sigla em inglês), em Paris, em 1900. Até hoje, é o mais falado de todos os ICMs. Ocorreu durante a Exposição Universal, enorme exibição dos avanços da civilização, da ciência e da tecnologia na capital francesa, de abril a novembro de 1900. Talvez por isso, o congresso tenha tido uma atmosfera muito relaxada, com bastante tempo livre para que os participantes pudessem apreciar as maravilhas da Exposição.

    A essa altura, os dois homens já tinham se convertido nas maiores lideranças mundiais da matemática e, somado às fortes tensões entre os seus países na época, é provável que isso tenha conduzindo a uma certa rivalidade entre eles. Nenhum dos dois havia participado do primeiro ICM, em Zurique em 1897. No caso de Poincaré, a ausência deveu-se à morte de sua mãe. Mas ele preparara o artigo "Sobre as relações entre a análise pura e a física matemática", no qual discutia como as suas disciplinas se ajudam reciprocamente –que foi apresentado por outra pessoa.

    Em 1900, Poincaré seria conferencista plenário do ICM e eleito presidente do Congresso. Em sua palestra falou sobre "O papel da intuição e da lógica em matemática". Hilbert também foi convidado para ser conferencista plenário, mas demorou tanto para responder que perdeu o lugar. Quando finalmente enviou o trabalho, só havia vaga na seção de Bibliografia e História, muito menos nobre do que uma palestra plenária. Como explicar um atraso tão estranho?

    A verdade é que Hilbert havia lido o artigo de Poincaré no ICM de 1897 e queria aproveitar o segundo congresso para lhe dar uma resposta, fazendo uma apologia da matemática pura por si mesma. Tendo pedido a opinião do colega alemão Hermann Minkowski (1864 - 1909), este respondeu: "O mais atraente seria tentar olhar o futuro e elaborar uma lista de problemas que os matemáticos possam tentar resolver ao longo do próximo século. Dessa forma, você poderá fazer com que as pessoas falem da sua palestra durante décadas."

    Assim, em 8 de agosto de 1900, Hilbert apresentou na Universidade Paris-Sorbonne aquela que ainda é a mais famosa de todas as palestras proferidas em ICMs: "Problemas matemáticos".

    Hilbert listou 23 problemas que, na sua opinião, seriam importantes para o desenvolvimento da matemática no século que se iniciava. No longo preâmbulo, fez uma reflexão sobre o conhecimento matemático, culminando na exclamação "In der Mathematik gibt es kein Ignorabimus!" (em tradução livre: "Em matemática tudo pode ser sabido!").

    Como vimos em coluna anterior, o teorema da incompletude de Gödel viria mostrar que tal otimismo não era realmente justificado.

    Na ocasião, a palestra de Hilbert não teve tanto impacto quanto talvez ele esperasse. Mas, ao longo do tempo, foi ficando cada vez mais conhecida e a grande maioria dos 23 problemas acabou realmente tendo um papel muito importante no modo como a matemática evoluiu ao longo do século 20.

    O terceiro ICM foi em 1904 na bela cidade de Heidelberg, sede da mais antiga universidade da Alemanha. Hilbert apresentou o trabalho "Sobre os fundamentos da lógica e da aritmética", no qual lançou as bases do "Programa de Hilbert". Poincaré não participou nessa ocasião. Mas no quarto ICM, em 1908, em Roma, daria uma resposta às apresentações do alemão nos eventos anteriores, por meio da palestra "O futuro da matemática".

    Em 1909, foi a vez de Poincaré visitar o colega na sua universidade de Göttingen, que o prestígio de professores como Gauss, Riemann, Noether, Klein, Minkowski e do próprio Hilbert, entre muitos outros, havia transformado numa das mais brilhantes do mundo. Poincaré proferiu seis palestras, cinco delas em alemão, o que mostra que havia evoluído muito no idioma.

    Esse foi o último encontro entre os geniais matemáticos. Três anos depois, Poincaré morreu em Paris, vítima de uma embolia. Hilbert lhe sobreviveu por três décadas, mas os seus últimos anos foram muito entristecidos pela doença e pela ascensão totalitária em seu país. Quando perguntado pelo ministro da educação nazista se a expulsão dos judeus havia afetado o Instituto de Matemática de Göttingen, respondeu: "Afetado? Ele não existe mais, existe?!"

    marcelo viana

    Matemático e diretor-geral do Impa, é ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France. Aqui, mostra como a matemática pode transformar vidas e ser divertida. Escreve às sextas-feiras.

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