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    Marcelo Viana

    A criptografia moderna não existiria sem os números primos

    29/09/2017 02h00

    Thinkstock
    Criptografia ajuda na proteção de dados pessoais
    Criptografia ajuda na proteção de dados pessoais

    Em 1770, o matemático inglês Edward Waring (1736-1798) escreveu o livro "Meditationes Algebricae" ("Meditações sobre a Álgebra"), onde se lê a seguinte afirmação: "Se p é um número primo, a quantidade 1 x 2 x 3 x... x (p-1) + 1 dividida por p dá um número inteiro. Esta elegante propriedade dos números primos foi descoberta pelo eminente John Wilson, um homem muito versado em assuntos matemáticos".

    Esta homenagem entusiasmada não é para ser tomada a sério: além de ser amigo e ex-aluno, Wilson apoiara a controversa escolha de Waring como sucessor de Isaac Newton na Universidade de Cambridge. Havia um favor político a pagar...

    Essa propriedade dos primos já havia sido mencionada pelo matemático e filósofo muçulmano Ibn al-Haytham, que viveu no Egito em torno do ano 1000. Outro que fizera a descoberta antes de Wilson foi Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), embora não a tivesse publicado. Mas nenhum deles provou a sua veracidade, eles apenas verificaram alguns casos.

    Waring tentou justificar: "Teoremas deste gênero serão muito difíceis de provar por causa da falta de uma notação para representar números primos". Ao ler isso, o grande Carl Friedrich Gauss (1777-1855) exclamou depreciativamente "Notationes versus notiones!", querendo dizer que em matemática as noções são muito mais importantes que as notações.

    Aliás, o teorema foi demonstrado logo em 1771, por Joseph-Louis Lagrange (1736-1813), o qual também provou a recíproca: se p não é primo, então o quociente de 1 x 2 x 3 x... x (p-1) + 1 por p não é um número inteiro. Talvez devesse ser chamado teorema de Lagrange. Mas ficou "teorema de Wilson" mesmo.

    A definição é simples, todo mundo aprende na escola: um número inteiro maior que 1 é primo se ele não pode ser escrito como produto de dois números inteiros maiores que 1. Mas a teoria dos primos é rica e sofisticada. Euclides mostrou por volta de 300 a.C. que existe uma quantidade infinita de primos. Atualmente, o maior conhecido é 2^74.207.281 − 1, que tem 22.338.618 dígitos.

    Euclides também provou o teorema fundamental da aritmética: "todo inteiro maior que 1 pode ser escrito como produto de primos e essa escrita é única, a menos da ordem dos fatores". Assim, os primos são as peças básicas com que são construídos todos os números inteiros. A propósito, é por isso que eles são chamados desse jeito: "primus" é "primeiro", em latim.

    Dois é o único primo par e no começo todos os ímpares são primos: 3, 5, 7. Mas a partir do 9 = 3 x 3 começam a aparecer lacunas –por exemplo, de 114 a 126 não há um único primo– e fica muito difícil prever quando surgirá o próximo.

    O teorema dos números primos, provado pelo francês Jacques Hadamard (1865-1963) e pelo belga Charles-Jean de la Vallée Poussin (1866-1962), afirma que "a fração dos números menores que um dado N que são primos é aproximadamente 1/log N", onde log N representa o logaritmo natural. Portanto, a percentagem de primos entre 1 e N vai diminuindo à medida que N cresce.

    O alemão Don Zagier, especialista em teoria dos números, escreveu uma vez que "os primos surgem como ervas daninhas entre os números inteiros, parecendo não obedecer a nenhuma regra a não ser a do acaso, mas também apresentam uma regularidade impressionante e há leis governando o seu comportamento, às quais eles obedecem com precisão quase militar".

    Os matemáticos Ben Green, britânico, e Terence Tao, australiano, conseguiram avançar muito no estudo do comportamento "aleatório" dos primos, o que lhes permitiu provar em 2004 que existem progressões aritméticas m + r, m + 2r, m + 3r,..., m + kr de primos com "comprimento" k tão grande quanto se queira. Esse resultado espetacular valeu a Tao a Medalha Fields, prêmio mais prestigioso da matemática, em 2006. A progressão aritmética de primos mais longa que se conhece atualmente tem comprimento 26.

    Em geral, pode ser muito difícil verificar se um dado número é primo ou não: claro que sempre podemos tentar dividir por todos os números menores que ele, mas isso demora muito se o número for grande. O melhor método conhecido foi descoberto em 2002 pelos indianos Manindra Agrawal, Neeraj Kayal e Nitin Saxena, mas mesmo ele é pouco eficaz para ser usado na prática.

    Ainda mais difícil é, dado um inteiro qualquer, encontrar a sua fatorização em números primos dada pelo teorema fundamental da aritmética. Essa dificuldade tem um lado muito positivo: está na origem da principal aplicação prática dos números primos, a criptografia moderna.

    Nós matemáticos estamos habituados a que nos perguntem para que serve o que fazemos, e nem sempre é fácil responder. Fico imaginando um matemático do Egito antigo pedindo financiamento para sua pesquisa sobre primos.

    "Mas isso é matemática pura, para que serve?", questiona o faraó. "É muito bonito, majestade", responde o colega, "e também vai ser muito importante quando inventarem a tecnologia da informação, daqui a 4.000 anos".

    Será que conseguiria o dinheiro?

    Para terminar, proponho um debate polêmico. O número 1 costumava ser considerado primo, mas no século 20 foi excluído da lista.

    O que pensam os leitores? O 1 deveria ser classificado como primo ou não? Por quê? Respostas são bem-vindas pelo e-mail vianafolhasp@gmail.com.

    marcelo viana

    Matemático e diretor-geral do Impa, é ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France. Aqui, mostra como a matemática pode transformar vidas e ser divertida. Escreve às sextas-feiras.

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