• Colunistas

    Friday, 03-May-2024 14:00:25 -03
    Marcius Melhem

    Nem a ciência nem a religião evitaram a tristeza da morte do meu amigo

    18/06/2017 02h00

    O receio de perder o outro nasce com a gente. E, por ironia, é a única coisa que a gente não perde.

    Ainda bebês, ficamos em pânico com aquela sádica brincadeira do "Cadê papai? Achou!" ou "Sumiu/ apareceu".

    Quando nossos pais escondem o rosto com as mãos, nos presenteiam com um segundo e meio de pavor absoluto e depois sorriem do nosso medo de que eles nunca mais estivessem ali.

    Anos depois, quando o sádico já era eu, perguntei à minha analista se era justo brincar disso com as minhas filhas.

    Débora Gonzales/Folhapress
    Ilustração de Débora Gonzales para a coluna de Marcius Melhem de 18 de junho de 2017

    E aprendi que há um efeito positivo nesse jogo, pois a perda momentânea é seguida da reafirmação da presença.

    A criança passa a saber que se o pai se esconde com as mãos, ou vai trabalhar, ou viaja, ele voltará.

    Mas o receio de perder o outro continua em nós.

    Uma vez li um estudo sobre a morte que falava sobre como ela foi sendo desnaturalizada na civilização ocidental.

    Antigamente, se alguém estava à beira da morte, ficava deitado em sua cama, recebia seus familiares e amigos, partilhava seus bens, dizia suas últimas palavras e os mais próximos se despediam.

    Havia uma transição entre o estar/não estar. A despedida tinha muita importância.

    Com o avanço da medicina, a morte foi sendo tirada do nosso convívio.

    Se alguém está mal é logo internado, e quanto pior estiver, menos pode receber visitas.

    Quando a morte chega, não temos mais a despedida.

    Só a notícia.

    Nós temos muito medo da morte. E dedicamos bilhões de qualquer moeda para que a ciência nos ajude a adiar esse encontro marcado.

    Outros tantos bilhões circulam na indústria da fé, para que nos convençam de que a morte não existe de fato.

    Nesta semana, nem a ciência nem a religião evitaram a tristeza da morte do meu amigo Moreno.

    Queria muito que ele estivesse brincando de "Sumiu/apareceu".

    Queria muito ter me despedido.

    Um enorme beijo e todo meu amor pra você, Moreno.

    marcius melhem

    Escreveu até novembro de 2017

    Marcius Melhem é ator e humorista brasileiro. Ele é roteirista do 'Zorra' e do 'Tá no Ar' e autor de peças de teatro.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024