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    Marcius Melhem

    Eu já enlouqueci um peixe

    16/07/2017 02h00 - Atualizado às 15h06

    Trish Hamme/Flickr
    Gato
    Gato

    Sei que não deveria confessar isso assim, de público. Mas vou. A questão é: não existe a menor possibilidade de eu tratar bicho como gente.

    Bicho é bicho, gente é gente. Embora em muitos casos encontremos mais amor e dignidade nos bichos que em muita gente.

    Tento sinceramente estabelecer uma empatia com esse amor tão profundo. Mas não consigo. Sou especialmente indiferente com os que (não satisfeitos em chamar cachorro de filho) falam com voz de criança coisas como "cadê o amor do pai?", "cadê meu filhão?", "tá com fome, filho?".

    Há os que vão além e batizam gato de Zé Carlos, Kléber ou Inácio. O combo "nome de gente/chamar de filho/voz de criança" me dá arrepios.

    Tenho um amigo que tinha um papagaio. E cismava que conseguia interpretar o que o bicho falava. Era bem constrangedor ver isso. O papagaio fazia "crá!" e meu amigo: "Viu? Disse meu nome!" O nome era Marcio.

    "Olha o que ele tá aprendendo! Canta o hino, canta". O papagaio fazia "crá!". Meu amigo: "Ouviu? Uma vez Flamengo..." Puxado pra mim.

    Claro que não sou insensível a maus tratos ou morte de animais. Fico mexido, acho abominável, mas... quando morre um animal da família, não me parece que se foi um parente. Até porque quando a gente tem um gato ou um cachorro, a menos que ele chegue na sua casa quando você tiver 80 anos, tá meio claro que ele vai primeiro.

    Talvez meu desapego animal venha de uma eterna inabilidade pra ter bichos. Quando criança, tive dois canários. O gato do vizinho os comeu em uma semana. Tive uma tartaruguinha também. Para minha humilhação, ela fugiu. Devia estar fugindo havia dias e eu não notei. No meu primeiro casamento tive um cachorro. Por dois meses. Nos separamos e perdi a guarda.

    Mas nada supera a vez em que, já adulto, enlouqueci um peixe.

    Explico: decidi ter um peixe ornamentando meu escritório. E cismei que teria de ser um dourado, nadando num aquário redondo de água límpida, sem mais nada dentro.

    Quando consegui, coloquei o aquário numa prateleira quadrada, espécie de caixote branco preso à parede também branca. No segundo dia o peixe –cercado de branco por todos os lados– perdeu o referencial de direção. Quando cheguei, ele estava nadando de lado, meio que dançando break na água. Ali desisti.

    Pensando bem, meu maior gesto de amor aos bichos é não ser tão apegado a eles. Estão muito mais seguros assim.

    marcius melhem

    Escreveu até novembro de 2017

    Marcius Melhem é ator e humorista brasileiro. Ele é roteirista do 'Zorra' e do 'Tá no Ar' e autor de peças de teatro.

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