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    Marco Aurélio Canônico

    Vinte anos depois, 'Sobrevivendo no Inferno' mantém força e atualidade

    19/10/2017 02h00

    Carla Carniel-7.jun.2017/Folhapres
    SAO PAULO, SP 07.06.2017-SHOW RACIONAIS-O grupo de rap Racionais MCs celebrou 30 anos de carreira com um show na madrugada desta quarta-feira (7), na Audio Club, zona oeste de Sao Paulo (SP). (Foto: Carla Carniel/Codigo19/Folhapress) *** PARCEIRO FOLHAPRESS - FOTO COM CUSTO EXTRA E CRÉDITOS OBRIGATÓRIOS ***
    Mano Brown em show dos Racionais MCs em São Paulo

    RIO DE JANEIRO - Tendo ao fundo uma trilha sonora de filme de terror, à qual se misturam sons da periferia (cachorros latindo, sirenes ecoando), a voz grave de um jovem negro declama seu "Gênesis" em tom messiânico e ameaçador.

    "Deus fez o mar, as árvores, as crianças, o amor. O homem lhe deu a favela, o crack, a trairagem, as armas, as bebidas, as putas. Eu, eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática e um sentimento de revolta. E tô tentando sobreviver no inferno."

    Assim começava uma jornada sonora pela violenta realidade das periferias brasileiras, registrada no que se tornaria um dos mais importantes discos da música nacional, "Sobrevivendo no Inferno", dos Racionais MCs.

    Lançado há 20 anos, o álbum de rap foi "uma rajada de PT [pistola]" que pegou de surpresa a indústria da música (foi gravado de modo independente), a mídia (à qual o grupo sempre foi avesso), os acadêmicos (que o tornaram objeto de estudo), a classe média e a elite (que ignoravam o cotidiano e a cultura das periferias).

    Inspirado nas ideias e no estilo discursivo de Malcolm X, o quarto disco do grupo era sombrio, colérico e combativo como jamais se ouvira por aqui —seu paralelo mais próximo são os trabalhos de rappers americanos como os do NWA e os do Public Enemy.

    Buscando ser "a voz dos que nunca tiveram voz", os Racionais (Mano Brown, KL Jay, Edi Rock e Ice Blue) retrataram a realidade que conheciam: pobreza, crime, morte, preconceito, desesperança, mas também a fé, a camaradagem, o orgulho negro e a luta contínua dos moradores das quebradas.

    "Sobrevivendo no Inferno" começa com um pedido de proteção ao santo, na versão de "Jorge da Capadócia" (do ídolo Jorge Benjor), e termina com um "Salve" "para as comunidades do outro lado do muro". Entre uma e outra, nove canções (há também uma instrumental) alternam protesto e crônica urbana.

    As duas pérolas do disco são "Capítulo 4, Versículo 3" e "Diário de Um Detento". Na primeira, Mano Brown dá voz a um personagem que acabaria sendo eternamente associado a ele: o rapper que é a encarnação do ódio, que não dá risada, não abaixa a cabeça para ninguém (nem polícia, nem patrão, nem bandido) e só teme a Deus.

    A segunda, baseada em texto de um presidiário do Carandiru, Jocenir, é o mais bem acabado retrato do inferno carcerário nacional. Lançada cinco anos após o massacre dos 111 presos, ganhou um videoclipe impactante e impulsionou a fama do grupo para além do gueto.

    É claro que uma obra tão rancorosa e contundente cobraria um preço. "A gente começou a viver aquilo", disse Brown em entrevista recente ao repórter André Caramante, disponível no YouTube. "Era um clima hostil. Essas músicas provocam alguma coisa diferente no ambiente."

    Ouvindo o álbum, não é difícil entender do que ele está falando: "Minha intenção é ruim / esvazia o lugar / eu tô em cima, eu tô afim / um, dois, pra atirar / Eu sou bem pior do que você tá vendo / O preto aqui não tem dó / é 100% veneno", diz a letra de "Capítulo 4, Versículo 3".

    "Começou a morrer gente na porta das festas, tiroteio dentro da festa", diz Brown.

    Na mesma conversa, o rapper rechaçou toda a louvação e os elogios de "genial" que os Racionais receberam por conta de "Sobrevivendo no Inferno". Disse que apenas retratou o óbvio, que a cegueira do país não permitia enxergar.

    "Estava na cara deles. Eles não encontravam com os moleques no farol? Eles já não tinham visto assalto, as favelas se multiplicando na cidade? Puta país racista do caralho, só patifaria. Nós falamos o óbvio, por que eles não veem?" Duas décadas depois, a pergunta continua válida.

    marco aurélio canônico

    Jornalista foi correspondente em Londres, editor do 'Folhateen' e de Fotografia e diretor da sucursal Rio.
    Escreve às quintas.

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