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    Marcos Lisboa

    Manuscritos não queimam

    27/11/2016 02h00

    Não parece recomendável inventar um passado alternativo, ainda mais nos tempos atuais. Na Rússia de Stalin, apagavam-se das fotos as personagens que o regime tinha eliminado da vida.

    Por aqui, alguns acreditam, como o apóstolo João, que basta o verbo, e reescrevem a história, os governos que apoiaram e as escolhas que fizeram.

    Em 2003, vários defendiam que fosse outra a política econômica, que deveria seguir os exemplos da Venezuela e da Argentina. Outros foram contra a focalização da política social. Alguns criticaram a proposta de limitar o gasto público em 2005. Tantos apoiaram a política econômica no começo desta década.

    Mikahil Bulgakov foi vítima menor dos tempos de Stalin.

    Certamente, a sua carreira de dramaturgo foi prejudicada; houve prisão e confisco dos seus diários, além de uma vida sacrificada pelo autoritarismo que negava o direito à crítica. Mas não foi assassinado e, ocasionalmente, encenou algumas das suas peças, permitidas pela ambiguidade conflitada de Stalin, que o admirava, ainda que refratário à divergência.

    "Manuscritos não queimam" talvez seja a frase mais famosa em um romance admirável.

    O "Mestre e a Margarida" começou a ser escrito nos anos 1920 e declarado concluído com a sua morte antes do combinado, pobre e doente, no fim da década seguinte, em um apartamento depauperado na Moscou sufocada pelo totalitarismo. O romance foi publicado 30 anos depois. A viúva e o acaso superaram o regime.

    Nas décadas seguintes, novas versões foram editadas, resgatando trechos dados como perdidos ou previamente censurados.

    Nesse romance peculiar, o Mestre é apresentado apenas com a história já bem andada. Antes, conhecemos uma versão rocambolesca do Diabo e seus asseclas, que aterrorizam intelectuais oficiais na Moscou de então.

    O Mestre escreve uma história de Jesus com grafia inusitada e conflitos inesperados, contada em capítulos intercalados com as divertidas, ainda que trágicas, ocorrências em Moscou, perturbada pelas criaturas peculiares do autor.

    Bulgakov aproveita para retaliar a opressão de Stalin, em meio a temas maiores. Um, sobrevive pelos seus manuscritos; outro, pelas lápides das suas vítimas.

    No meio do romance, o Mestre queima os manuscritos de seu livro. Mais tarde, o diabo restitui-lhe o texto intacto. Manuscritos não queimam, afirma.

    No começo dos anos 1920, a polícia invadiu seu apartamento e confiscou seus diários. Quando foram devolvidos, muito depois, Bulgakov decidiu queima-los para evitar novos problemas.

    Décadas após a sua morte, parte dos diários foi encontrada em cópias preservadas pelos órgãos de segurança soviéticos. Manuscritos não queimam.

    marcos lisboa

    Marcos de Barros Lisboa, 52, é doutor em economia pela Universidade da Pensilvânia. Foi secretário de Política Econômica no Ministério da Fazenda entre 2003 e 2005 e é Presidente do Insper.

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