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    Marcos Lisboa

    Meu consolo é você, Benguelê

    21/05/2017 02h00

    30.abr.55/Folhapress
    O músico Pixinguinha
    O músico Pixinguinha

    "Aqui mora o senhor Pixinguinha?" O visitante queria convidá-lo para substituir o flautista do show regular no teatro Rio Branco, assistido por cerca de 600 pessoas, no Rio de Janeiro do começo do século 20.

    A pergunta surpreendeu, afinal Pixinguinha era um garoto de 15 anos que estava a brincar fora de casa com a sua pipa. Desde cedo, revelara que não estava só de passagem.

    Alfredo Viana da Rocha Filho nasceu no longínquo 1897. Seu pai, funcionário público e flautista amador, levava-o para as suas rodas de música.

    Essa história é contada por Lira Neto em "Uma História do Samba".

    As rodas proliferavam na região do Rio de Janeiro que Heitor dos Prazeres denominou Pequena África, onde os antigos escravos preservavam sua religião, como o candomblé, e sua música, como o jongo e a umbigada, relata Roberto Mouro em "Tia Ciata".

    Como os cozidos ibéricos que misturam frango e porco com frutos do mar, a Pequena África incorporou gêneros e instrumentos de europeus, como a flauta e o violão, à cantoria e à percussão dos filhos dos escravos. Uns vindos por escolha; outros, com violência.

    O maxixe anunciou a antropofagia do país, combinando traços da polca e do lundu. A música se insinua lúdica, ainda que decorrente de muita técnica e do conluio de tradições, em uma sociedade que ocasionalmente nega a sua hierarquia em meio à opressão cotidiana.

    Sua dança aparentemente malemolente, porém disciplinada e sutil, foi denunciada como demasiadamente sensual.

    Durante a melodia, todos iguais, cada um trazendo a sua herança; restritos pela percussão, que preservava o ritmo, e pela polícia, que reprimia os desassistidos.

    As rodas educaram as novas gerações de músicos, que inventaram o choro e o samba. Pixinguinha foi o centro da primeira metade desse jogo. Jacob do Bandolim, do segundo tempo.

    Álvaro Costa e Silva conta que, em uma viagem de Niterói para o Rio de Janeiro, Jacob leu as partituras de um concerto e começou a assobiar. Seu companheiro de viagem comentou: "Jacob, não é bem assim, a melodia está errada". Ele respondeu: "estou assobiando a parte do violoncelo". E seguiu reproduzindo os temas dos demais instrumentos.

    Reza outra história que, no fim da vida, Pixinguinha voltava para casa quando foi assaltado. A conversa foi e voltou, e terminou com a quase vítima convidando os assaltantes para terminar a noite tardia bebendo uma cerveja em sua casa.

    Pixinguinha, com seu sorriso escancarado em meio a olhos tristes, revolucionou a música brasileira. Lamento, Rosa, Sofres Porque Queres: 1 a 0. Acerta o Passo, Benguelê.

    Em meio à desesperança, o legado de Pixinguinha nos consola. Há outro Brasil.

    marcos lisboa

    Marcos de Barros Lisboa, 52, é doutor em economia pela Universidade da Pensilvânia. Foi secretário de Política Econômica no Ministério da Fazenda entre 2003 e 2005 e é Presidente do Insper.

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