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    Marcos Augusto Gonçalves

    De volta à estação Finlândia (ou onde o trem da crise da Ucrânia vai parar?)

    18/03/2014 03h15

    A ideia de que a anexação da Crimeia à Ucrânia foi um erro histórico é corrente na Rússia –e compartilhada por adversários de Putin. Embora a oposição discorde da maneira como o presidente lida o assunto, ninguém desconhece que a fusão foi decidida de uma penada pela então União Soviética e atropelou situações históricas.

    Nikita Kruschev, que chegara ao poder em setembro de 1953, ano da morte de Josef Stálin, decidiu oferecer a península como um "presente" para a Ucrânia, país com o qual mantinha fortes laços pessoais –lá viveu, trabalhou, fez carreira política e encontrou a última de suas mulheres.

    O gesto coincidiu com os 300 anos da incorporação do país ao Império Russo e foi uma forma de aplacar insatisfações e as consequências desastrosas tanto da Segunda Guerra quanto da coletivização agrícola promovida no período stalinista.

    A mudança de status da Crimeia foi decidida numa sessão de 15 minutos do Comitê Central do Partido Comunista e mereceu, na época, nota de um parágrafo no "Pravda", o jornal do regime.

    No domingo passado, diante da virtual vitória pró-Rússia no referendo, o "Washington Post" publicou editorial em que recomendava ao presidente Obama e à Europa que impusessem fortes e duradouras sanções contra Putin para "enfraquecer" o seu regime. Será esse, de fato, o caminho a seguir?

    No início do mês, o mesmo "Post" ofereceu leitura mais interessante sobre o assunto: o artigo, em que o ex-secretário de Estado Henry Kissinger sugeria princípios a serem levados em conta nas discussões diplomáticas para evitar que a Crimeia torne-se um "satélite russo".

    Dizia ele: "O Ocidente deve entender que, para a Rússia, a Ucrânia não pode ser jamais considerada apenas um país estrangeiro. A história russa começou no que já foi chamado de Rus'Kievana [um principado do século 12]. A religiosidade russa se expandiu a partir de lá. A Ucrânia foi parte da Rússia durante séculos, e suas histórias já se entrelaçavam antes disso".

    Não por acaso, a frota russa no Mar Negro está baseada na Crimeia –uma circunstância a mais para que Putin veja o problema ao contrário: porque entregar ao ocidente o que, afinal, sempre foi nosso e tem relevância estratégica? Da mesma forma que velhos comunistas, ele move-se como quem se sente protegido pela história.

    Para Kissinger, a meta diplomática seria manter a Ucrânia como Estado independente e conceder à Crimeia –e eventualmente outras regiões– mais autonomia. Os ucranianos poderiam decidir sobre tratados econômicos com a Europa ou quem quisessem, mas o país não deveria participar da Otan. O modelo a seguir, em termos de política externa, seria uma volta à estação Finlândia, país que hoje se equilibra cautelosa e silenciosamente entre os dois lados da disputa.

    Os conselhos do ex-secretário de Estado podem a essa altura ser inúteis, mas seria razoável ter em mente seu principal e mais genérico alerta: "nós sabemos para onde estamos indo? Na minha vida, eu vi quatro guerras iniciadas com grande entusiasmo e apoio público, que não sabíamos como terminar, e três das quais nos retiramos unilateralmente. O teste da política é saber como termina e não como começa".

    As novas sanções anunciadas pelo governo dos EUA e pela Europa são uma resposta inevitável –quase protocolar– ao modo como as coisas foram conduzidas pela Rússia. Parece, porém, um contrassenso que europeus e russos, com consideráveis interesses econômicos em comum, se lancem numa corrida de represálias comerciais que não se sabe como vai terminar.

    Não há dúvida quanto ao perfil autocrático e os devaneios imperiais de Putin –o que, aliás, não é novidade na história de seu país. Mas se a ideia é contê-lo, seria recomendável um pouco mais de pragmatismo do que a retórica ideologizada do confronto –e da demonização – pode comportar. Não é demais lembrar que ainda estamos num cenário de acomodação de fronteiras e de influências da era pós-Guerra Fria, que na realidade é recente e não se consolidou.

    Ao anunciar as sanções, a Casa Branca ressaltou que o caminho da diplomacia permanece aberto e será trilhado. Obama sabe que não pode colecionar mais um fiasco político – e é bom que saiba também em que estação o trem dessa história vai (ou pode) parar.

    marcos augusto gonçalves

    Foi editor da 'Ilustríssima'. É autor de 'Pós Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada' e de '1922 - A semana que Não Terminou'.

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