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    Marcos Augusto Gonçalves

    Quando a maconha era o álcool

    25/03/2014 02h49

    Na rua Norfolk, no baixo leste de Manhattan, tem um bar chamado Back Room. É um "speakeasy" –que vem a ser o nome genérico dos estabelecimentos que serviam bebida alcoólica ilegalmente nos tempos da Lei Seca.

    Em Nova York, onde o proibicionismo menos prosperou, eles se contavam aos milhares eram frequentados por autoridades, profissionais respeitados, senhoras, moças e gângsteres. O lugar, garantem os donos, é um dos raros que se mantiveram com as feições dos anos 1920. O visitante desce uma escadinha, atravessa uma muvuca, sobe outra escada e chega a uma porta de ferro sem nenhum letreiro. Abre, e por alguns instantes tem a sensação de que entrou numa outra época.

    O "décor" afrancesado, com pinturas nas paredes, sofás e poltronas, e as bebidas servidas em xícaras de chá –para "disfarçar", como antigamente– garantem a atmosfera retrô. A vantagem é que ninguém ali está cometendo uma ilicitude. Depois de banida por mais de 10 anos, a droga foi novamente liberada no início da década de 1930.

    A origem da Lei Seca foi um movimento puritano da América rural, liderado por mulheres. O crescente consumo de álcool levava os homens a praticar atos violentos, desencaminhava os mais jovens, provocava doenças e arruinava famílias. Era um flagelo que precisava ser contido. Pouco a pouco, a campanha ganhou projeção e obteve resultados. Diversos Estados começaram a adotar a restrição até que ela se transformasse numa nova emenda à Constituição.

    Muitos esperavam que a cerveja e, possivelmente, o vinho, permaneceriam legais, mas a regulamentação da norma constitucional foi rigorosa. Algumas concessões, no entanto, tiveram que ser feitas –atendendo a pressões diversas, em geral das cidades. Foi o momento do "jeitinho americano".

    Permitiu-se, por exemplo, fabricar cerveja em casa, para consumo doméstico; os estoques anteriores à vigência da lei poderiam ser consumidos; e os médicos ficavam autorizados a fornecer receitas para pequenas doses de "álcool medicinal", vendido em farmácias. A Igreja Católica também conseguiu garantir sua liturgia –e consta que adquiriu quantidades de vinho muito superiores às necessárias para o sagrado uso em missas.

    O resultado da história é conhecido: uma nação de hipócritas e contraventores contaminada pelo gangsterismo. Novamente mulheres entraram em cena, desta vez para liderar uma campanha a favor da liberação. Depois de muita discussão, pela primeira vez na história do país uma emenda à Constituição foi cancelada –e os americanos puderam voltar a beber.
    Sentado numa poltrona do Back Room, com uma xícara de vinho na mão, não pude deixar de pensar que o álcool já foi tratado como ainda hoje se trata a maconha.

    Sou dos que defendem a descriminalização do consumo e a paulatina formalização do comércio de drogas. Enquanto houver demanda –e ela tem existido desde sempre– haverá alguém disposto a saciá-la. Se o produto é proscrito, o comércio continuará a existir sob a forma de banditismo. Se é verdade que a legalização não assegura a plena extinção da venda ilegal, é evidente que reduz o tráfico e aumenta a jurisdição da sociedade sobre a atividade, que pode ser taxada e melhor controlada. Legalizar não significa encampar ou promover. A droga dever ser tratada como o que é. É dever do Estado, dos pais, de quem educa, alertar sobre os riscos e procurar restringir seu uso.

    Mas o fato incontestável é que as políticas proibicionistas consomem recursos vultosos com resultados pífios –e tratam tudo como se fosse a mesma coisa. Ao contrário do que repete o senso comum conservador, há gradações entre as drogas. Maconha não é crack e nem "leva ao crack". E o critério não pode ser o singelo "faz mal" ou não à saúde. Se fosse, as prateleiras dos supermercados precisariam ser esvaziadas, os bares fechados, o tabaco banido. Viver, infelizmente, faz mal à saúde.

    Não creio que os direitos individuais ou a lei da oferta e da procura devam se impor sobre todas as esferas da vida –mas um pouco de bom senso, pelo menos no caso da maconha, não prejudicaria ninguém. Legalizá-la é um primeiro passo, que a essa altura parece inevitável. Não é só o Mujica: nos EUA, o país do proibicionismo, alguns Estados já oficializaram a venda e o consumo. Homens públicos respeitáveis, ex-presidentes, scholars e intelectuais defendem o caminho da legalização. É uma ideia que se dissemina.

    Então o que falta? Bem, talvez só as mulheres se mobilizarem de novo!

    marcos augusto gonçalves

    Foi editor da 'Ilustríssima'. É autor de 'Pós Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada' e de '1922 - A semana que Não Terminou'.

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