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    Marcos Augusto Gonçalves

    Tunga expandido

    29/04/2014 02h00

    Na segunda-feira (28) a Ilustrada publicou um texto meu sobre a exposição que Tunga, um dos mais importantes artistas contemporâneos brasileiros, inaugurou recentemente em Nova York, na galeria Luhring Augustine. Como é habitual no jornalismo, muito de nossa conversa ficou fora da versão editada. Editar, sabe-se, é cortar. Tinha pensado inicialmente em fazer uma entrevista no formato pergunta e resposta, mas mudei de direção.

    Relendo o material, fiquei tentado a publicá-lo numa versão expandida. A web é boa para isso. Tunga, que não é fácil, é daqueles artistas capazes de discorrer sobre a obra de maneira inteligente –e notável. Decidi-me, então, por publicar aqui na minha coluna semanal no site da Folha um pouco mais do que se pode ler no papel.

    Não é a "íntegra" da entrevista, só um corte ampliado. Creio que ao menos os habituais amigos da arte poderão encontrar algum interesse. A todos, de qualquer forma, recomendaria uma clicada no site do artista, que é muito bom e informativo.

    MAG - Você está mostrando um novo conjunto de trabalhos. Ao mesmo tempo que esse conjunto se destaca da produção anterior, mantém algumas relações essenciais, como seria natural. O que está mudando?

    TUNGA - A gente não consegue não ser a gente mesmo. A gente procura sempre querer saber quem a gente é e muitas vezes a gente se surpreende e encontra um outro em si, um outro às vezes radicalmente diferente. Mas no fundo você vai ver que esse radicalmente diferente é idêntico àquilo que você achava que era diferente...

    As estratégias do meu trabalho têm sido desde o começo construir obras no sentido mais amplo. Não peças isoladas, mas um grupo de pensamento que forme uma "ópera", um conjunto de linguagens diversas abordando um tema em profundidade. Se você for ver, ao longo de minha trajetória, há quatro ou cinco momentos distintos que constituem trabalhos de uma dimensão, eu diria, "sinfônica".

    O "Laminadas Almas", por exemplo, é um grupo de pensamentos em torno da transformação e da metamorfose, de como essa ideia de metamorfose se infiltra na linguagem... Na série de "Lezarts", onde se inserem as tranças e os tacapes, já são outras questões, e assim sucessivamente.

    Para usar uma linguagem musical, acontece muitas vezes de o trabalho vir a partir de solos ou quartetos, que depois configuram esse campo sinfônico. Mas acontece também o contrário, de o trabalho já aparecer como um conjunto. Nesse caso, os desdobramentos vão se acrescentando, se explicitando e também parodiando –no sentido profundo da palavra– elementos que já estavam ali pulsantes, presentes ou latentes.

    Como foi o processo de criação desse novo conjunto de obras?

    Essa exposição foi um processo de trabalho de aproximadamente cinco anos. Depois de um momento de síntese da minha obra, eu vi por bem tentar recomeçar, numa espécie de uma ascese em direção diferente, mas sobretudo com uma postura diferente. À diferença do que vinha fazendo antes, eu me lancei em algumas aventuras completamente às escuras ou, melhor dizendo, ofuscado por um excesso de luz, por um sentimento muito poderoso. Essas coisas acontecem porque a gente está vivo e há momentos na vida que te transformam. São momentos de caráter pessoal, mas o trabalho fala por si sobre essas mudanças, não é uma questão que possa ser reduzida a uma situação biográfica.

    As obras dessa exposição surgiram, na realidade, a partir de uma mostra anterior, chamada "Quase Aurora", na qual havia uma série de aquarelas.

    Na época, eu estava fazendo uma releitura dos chamados "Poemas de Loucura", do Holderlin, e o trabalho se relacionava com com tudo aquilo que reverbera em torno dessa sensibilidade. Uma sensibilidade que curiosamente se aproxima da poesia taoísta dos grandes mestres do oriente. Esses textos são de um complexidade única e ao mesmo tempo de uma simplicidade brutal.

    Fiquei interessado nesse sentimento "auroral" ali presente, sentimento de ir além de uma posição fenomenológica do sujeito, de tentar se colocar numa inocência em relação ao fenômeno e ver o que dele emana e o que de mim emana em direção a ele. Foi a partir disso que comecei essa construção.

    Essa nova aventura também veio sob a forma de técnicas diversas. Eu coloquei a mão na massa literalmente, comecei a trabalhar com terracota, a esculpir e modelar. A partir disso foi surgindo, pouco a pouco, um corpo de trabalho já à luz dessa "nova aurora" que veio se esboçando, de certa forma como como nas aquarelas, e resultou nessa exposição.

    Os desenhos são feitos com linhas contínuas e parecem evocar alguma coisa de místico. O que mudou nos desenhos?

    Esses desenhos têm como matriz uma longa série que vem desde os anos 80. As linhas daqueles desses desenhos anteriores sempre tiveram um quê de metomínia que me incomodava, porque direcionavam você a um campo fora do campo da representação. Foi no esforço de moldar com a mão as peças das esculturas que eu me dei conta de que as linhas nos novos desenhos poderiam seguir na mesma direção do fechamento dos corpos que eu estava construindo.

    Desenhos e esculturas foram feitos simultaneamente?

    Em geral tudo é concomitante nas minhas estratégias de trabalho, ainda mais porque eu estava, como disse "perdido", um pouco ofuscado, então cada linguagem ia corroborando o que a outra dizia e tentanto encontrar esse corpo unificado que é o que se chama de "obra". Então muitas vezes um desenho vinha em socorro de uma escultura e vice-versa. Pouco a pouco eu compreendi que havia uma relação muito mais estreita do que eu imaginava entre os desenhos e as peças das esculturas.

    Você usa materiais diferentes nesse trabalho. O que eles representam para você?

    É curioso, porque alguns materiais começaram a se impor e eu fui reencontrá-los no passado, em outros trabalhos. É o caso por exemplo das pérolas, que estavam numa "instauração" que eu fiz num desfile de moda, quando os personagens vinham com longos colares, que eram rompidos e depois colocados em areias, junto com sementes... Mas tudo isso se passava de maneira um pouco dispersa. Mas de fato é um repertório novo. Como em quase todos os trabalhos, eu creio que o material usado já é pensamento, é constitutivo, como a escolha do timbre de um instrumento é constitutivo numa composição. A escolha dos materiais já é algo falante.

    Gostaria que você falasse um pouco sobre a decisão de trabalhar com a "mão na massa".

    Eu deliberadamente me coloquei numa postura de retorno ao fazer com a mão. Sem nenhum elogio desse fazer com a mão, mas com a ideia de que aquilo que a mão fala é fundador. Quando você se volta para o fazer com a mão, você se reencontra com o arcaico, com matrizes. Mesmo diante dos objetos do nosso mundo hiper-desenhado, você começa a perceber a presença dessas matrizes. Você olha uma lâmpada incandescente e vê o bulbo, que vai te remeter para outros bulbos, para ampolas, para os vasos de vidro que eram usados na alquimia... Ou seja, você começa a ver que essas reminiscências equivalem à persistência do próprio pensamento arcaico, que continua embutido na modernidade –ou mesmo na pós-modernidade– como uma estrutura latente, vigente e poderosa, capaz efetivamente de nos abrir outro campo de compreensão da realidade instantânea.

    Um bom exemplo ou uma boa referência para isso, no campo da cultura e marcante para nossa geração, é o Pier Paolo Pasolini. Não que seja uma referência direta para o meu trabalho, mas no modo de pensar do Pasolini há essa configuração do arcaico com o contemporâneo, de maneira extremamente transgressora, aliás.

    O fazer com a mão me colocou próximo dessa postura de ter uma visão do começo, da inocência das coisas. Essa visão pode estar tanto no momento da formação da razão como na formação do mito.

    E que materiais você usou, pode enumerar alguns?

    Há inúmeras coisas que vêm da terra, coisas que vêm das árvores, dos corpos humanos. Resinas, terras, pedras, goma arábica, betume, borracha, gesso. A estrutura de ferro e o couro, que aparece como um elemento conectivo.

    A mudança que se nota dos materiais reflete um modo de pensar e traze embutida a expressão de uma certa alegria, na presença clara de uma cor um pouco híbrida, de começo de dia, de praia antes do sol nascer. Talvez seja um sentimento infantil de quem viveu na beira do mar...

    Essa claridade contrasta com outros momentos do seu trabalho, mais escuros, densos...

    A densidade permanece. Eu creio que a mudança radical que se operou na minha vida foi perceber que há mais mistério na vida, na luz, do que no escuro, na morte. Isso se torna presente no trabalho, quase como um elogio à vida. Creio que essa seja uma radical diferença que se expressa tanto esteticamente como profundamente no modo de pensar.

    A vida se transforma todos os dias e às vezes a gente toma decisões de transformações mais intensas. Essas revisões são grandes momentos da vida. A tarefa de um artista, de um poeta, é também estar atento a essa possibilidade de se transformar continuamente. Há uma certa maturidade da obra na minha obra que permitiria me fixar nela, mas eu correria o risco de me estagnar.

    Esse seria um trabalho de certa forma mais "aberto" do que outros anteriores?

    Anteriormente o programa mais geral do trabalho acabava se impondo ao fazer das peças. Nessas obras, cada peça tem em si uma aventura muito particular, porque parte de um não saber sobre ela mesma. Como num método de autoconhecimento, cada peça foi se construindo à medida em que era feita. Isso é um processo diverso de abordagem no meu trabalho.

    E eu sempre vi no meu trabalho alguma coisa de oracular. Você indaga o trabalho e ele te responde. Eu acho que essas obras, também pelo fato de remeterem a um modo de pensar relacionado ao arcaico, trazem no bojo delas essa intensidade oracular, quase como se você pudesse perguntar a elas sobre a natureza de uma pluralidade de coisas e elas pudessem te responder –caso você esteja aberto a essas respostas.

    Eu acho que mesmo uma visão dispersa, uma visão distraída ou irresponsável, pode propiciar um encontro com uma obra arte, no qual ela venha a te responder. Talvez até sob a forma de um sonho. Você pode passar por uma obra num espaço público, por exemplo, não perceber e depois vir a sonhar com esse evento, e no interior do seu sonho esse evento está te respondendo a uma questão que você coloca para você mesmo.

    Estou falando no campo do inconsciente, mas isso também pode ser traduzido à lucidez. Eu acredito que uma obra de arte possa e deva ser oracular. E quanto mais amplo for esse oráculo, mais talvez intenso ele seja.

    Esses trabalhos contêm referências explícitas e implícitas ao corpo. As próprias esculturas parecem aludir fisicamente a "corpos". Você poderia falar sobre isso?

    Com certeza. O corpo está presente aqui com uma característica particular. Primeiro se trata da identidade, sobre o que é um corpo. Esses desenhos e esculturas apontam para um corpo num estado particular. Eu remeto esse estado à noção da psicanálise de "estágio do espelho." Segundo essa noção, a experiência humana passa por um momento no qual a configuração do corpo é anterior e diferente daquela quando nos vemos no espelho com cabeça, tronco, dois braços, duas pernas etc. O corpo apresenta formações sucessivas configuradas segundo ordens da natureza do desejo.

    O corpo de um bebê nesse estágio anterior à identificação é uma configuração constante de partes que se fundem, se soltam, se moldam e se ligam umas às outras e também a coisas exteriores, como o seio materno, a luz, os ruídos... Ou seja, é um corpo flutuante, desmaterializado, digamos. Ou materializado segundo a hipótese de de que nós somos não só aquilo que nos constitui como carne, mas tudo aquilo que sentimos em volta.

    Esse corpo expandido, em que uma temperatura, uma luminosidade ou fragmento se montam e remontam, talvez seja um exemplo daquilo que pode ser vivido posteriormente através do amor.

    Eu falo do amor como a excelência do que eu chamo de energia de conjunção, aquela energia capaz de fazer com que de dois elementos surja um terceiro que não está presente nem no primeiro nem no segundo. Os três formando uma tríade são uma unidade e uma coisa nova. Essa força do amor é essa energia de conjunção, capaz de reconfigurar agora, no estado de lucidez, de consciência, à luz da razão, uma metamorfose contínua e uma percepção do corpo que se rege e se direciona pelo desejo.

    Um corpo expandido, onde aquilo que é corpóreo e incorpóreo se configura em uma obra. Retornando ao trabalho, nesses quase corpos que você disse identificar nos tripés há a presença de elementos, como as bacias, que podem facilmente nos remeter à lua, da mesma forma que as pérolas. Você também pode identificar sementes, frutificações, paisagens, um canto mar, um sol... Enfim, aquilo que é normalmente tido como fundo passa a ser elemento central, ao mesmo tempo que o corpo. É uma espécie de oráculo, onde o espaço e o que é são um só. Essa é a equação da energia de conjunção.

    Esse conjunto de trabalhos se fechou ou permanece aberto?

    Eu guardei esse tempo todo para chegar à maturidade desse conjunto de obras e fazer a primeira apresentação aqui em Nova York, nessa galeria na qual eu já fiz cinco exposições e que é a galeria com a qual eu trabalho há mais tempo. Eu acho que é um lugar privilegiado para eu apresentar um pensamento coeso para ser visto por um público amplo.

    É um marco inaugural de um programa de trabalho que se explicita em alguns momentos, que estão um pouco embaralhados ou mais ou menos explícitos: os desenhos que têm uma natureza mais alegórica, que são parte constitutiva das esculturas; os desenhos emoldurados, que são como topologias dessas esculturas e topologias das formas modeladas; e essas formas escultóricas que se apresentam como dedos, corpos, protuberâncias ou reentrâncias.

    Esse programa de trabalho vai se desenvolver em termos de escala.

    Eu vou fazer outras exposições. No Brasil, na Mendes Wood, que é a galeria que me representam; e vou também participar na Bienal de São Paulo.

    O que você já decidiu sobre a Bienal? Pode adiantar?

    A Bienal está ainda em fase de preparação mas será com certeza uma coisa que mostre um pouco a dinâmica das operações que estão presentes nesse trabalho. Talvez o lado oracular se faça mais presente, numa relação quase que inter-pessoal. Ao contrário da ideia de monumentalidade que a Bienal evoca, acho que vamos numa direção quase intimista, mas de grande escala.

    marcos augusto gonçalves

    Foi editor da 'Ilustríssima'. É autor de 'Pós Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada' e de '1922 - A semana que Não Terminou'.

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