• Colunistas

    Saturday, 18-May-2024 02:24:38 -03
    Marcos Augusto Gonçalves

    Praia dos controles

    27/05/2014 01h00

    Tempos atrás fiz parte de um grupo de convidados para uma viagem à Tailândia. Pulando de cidade em cidade, chegamos, exaustos, à noite, num resort, creio que em Phuket –e a primeira coisa que pensei em fazer foi uma sauna.

    Deixei as coisas no quarto, vesti um short e uma camiseta, e fui direto para lá. Eis que quando abro a porta me deparo com um dos colegas de "tour" –já entregue à transpiração. Era um amigo gay, muito divertido e inteligente. Olhei para ele e comentei, brincando: "Iii, se eu soubesse que era sauna gay não tinha vindo"...

    Rimos, e a brincadeira virou uma espécie de "meme" de nossa amizade. Até hoje quando nos encontramos em algum lugar, num lançamento de um livro, por exemplo, falamos um para o outro: "Iii, se eu soubesse que era lançamento de livro gay não tinha vindo"...

    Não pude deixar de me lembrar dessa história quando li que cenas de sexo entre homens no filme "Praia do Futuro" teriam desagradado alguns espectadores e levado um cinema a alertar o público sobre o conteúdo homossexual da obra. Os responsáveis negaram que a casa tivesse adotado tal procedimento, embora uma pessoa tenha relatado nas redes sociais que foi questionada na bilheteria –"o sr. tem certeza que deseja ver esse filme?" – e recebeu o ingresso com um carimbo: "avisado".

    O caso, é claro, provocou polêmica. Caberia ao cinema advertir sobre o "conteúdo" dos filmes? Certamente que não, muito menos sobre cenas de sexo gay –o que seria discriminatório. Na realidade, alertas já existem na classificação indicativa feita pelo Ministério da Justiça –com a salutar ressalva de que orientação sexual não constitui critério para agravar ou aliviar a avaliação. Há, contudo, uma advertência mais genérica sobre "situações sexuais complexas" ou "de forte impacto" –que leva a obra a não ser recomendada para menores de 18 anos.

    A classificação indicativa é um parâmetro oficial que tem por objetivo adequar a programação da TV às faixas horárias e orientar os pais. Se quiserem, podem autorizar os filhos a ver filmes acima da idade sugerida, com exceção dos classificados para maiores de 18 anos –o que, aliás, é discutível.

    Sou dos que não gostam nem um pouco de ver o Estado se metendo nas escolhas individuais. Vivi o bastante para ter sido impedido de ver obras como "Laranja Mecânica" ou "Je Vous Salue Marie", censurados pela ditadura e seus servidores, como o ex-presidente José Sarney.

    Concedo, porém, que não faz sentido uma TV exibir filmes eróticos ou propaganda de bebida em horários propícios à audiência infantojuvenil. E não vai ser o "mercado", quanto a isso, que assumirá a função de regulador. É preciso que o Estado cumpra esse papel.

    Aqui nos EUA está em curso uma polêmica análoga. Estudantes de algumas universidades têm solicitado que se especifiquem os conteúdos dos livros indicados para leitura. O argumento é que certas cenas poderiam reavivar situações traumáticas experimentadas anteriormente.

    A associação de alunos da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, por exemplo, quer implantar uma diretriz que obrigue professores a advertir explicitamente os estudantes sobre aspectos das obras que poderiam funcionar como "gatilho" para síndromes adquiridas em experiências como abuso sexual, participação em guerras ou discriminação racial. Os avisos são chamados de "trigger warnings".

    A opinião liberal, claro, é contrária. Muitos acadêmicos se manifestam contra o pleito desses alunos, considerando que os alertas sugerem uma fragilidade mental que deveria, no estágio adulto e no ensino superior, ser desafiada –não endossada.

    O debate está em curso. Os EUA são o país dos avisos e das cautelas. Vai-se a um simples restaurante e o garçom pergunta se você tem alergia a algum ingrediente. Vivemos tempos em que todos parecem querer controlar tudo. O mundo do cidadão neném.

    Não seria surpresa, portanto, se essa tentativa de impor os "trigger warnings" prosperasse sob o manto aborrecido e esquemático do "politicamente correto" –outra especialidade americana.

    marcos augusto gonçalves

    Foi editor da 'Ilustríssima'. É autor de 'Pós Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada' e de '1922 - A semana que Não Terminou'.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024