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    Marcos Augusto Gonçalves

    Será que o Tio Sam fumou um baseado?

    DE SÃO PAULO

    29/07/2014 03h00

    "O primeiro efeito é súbito e violento –o riso incontrolável. Em seguida, vêm alucinações perigosas –o espaço se expande– o tempo fica mais lento, quase parado... Idéias fixas vêm a seguir, evocando monstruosas extravagâncias, seguidas por distúrbios emocionais, total incapacidade de controlar pensamentos, perda completa de forças para resistir a emoções físicas, chegando-se, finalmente, a atos chocantes de violência, que terminam muitas vezes em insanidade incurável".

    O texto acima é parte da introdução de um filme que foi largamente difundido nos Estados Unidos, décadas atrás. Teve vários títulos, mas ficou famoso como "Reefer Madness" –que se poderia traduzir por "loucura do baseado".

    Financiado por um grupo de religiosos, a ideia era alertar os pais para os perigos do que seria o "verdadeiro inimigo público número 1 da América", a maconha, "um poderoso narcótico".

    A primeira versão data da segunda metade da década de 1930 –mas posteriormente os direitos foram comprados por um diretor de filmes B, que introduziu novas cenas e distribuiu a "obra" pelo país. Naquela época os norte-americanos, havia pouco, saíam da malfadada experiência do proibicionismo, que tornou a venda de álcool ilegal por mais de uma década.

    Como já comentei aqui, a Lei Seca, fruto de um movimento puritano de origem rural, revelara-se um equívoco. Serviu para incentivar o gangsterismo e criar uma nação de contraventores e hipócritas.

    No domingo (27/7), o jornal "New York Times" citou "Reefer Madness" como uma espécie de caricatura dos temores exacerbados que cercaram e ainda cercam os efeitos do uso a maconha. O jornal, como se sabe, publicou um editorial que marca sua decisão de se posicionar de maneira clara e direta em favor da legalização.

    Depois de uma série de discussões internas, o "Times" passou a defender a revogação da lei federal que há 40 anos baniu a marijuana, tornando-a ilegal.

    O editorial veio na esteira de várias iniciativas liberais em âmbito estadual. Quase três quartos dos Estados norte-americanos já adotaram algum tipo de medida que flexibiliza o uso da substância. A maior parte passou a reconhecer a utilização medicinal da droga –e dois, Colorado e Washignton, aboliram as restrições ao consumo e à venda.

    Os argumentos que o "Times" esgrime –e que vai explorar com mais profundidade em novos textos– são conhecidos. Entre eles: o proibicionismo é um fracasso custoso, os males da maconha para a saúde seriam menos danosos do que os causados pelo tabaco e pelo álcool e a repressão assumiu no país perfil discriminatório, atingindo sobretudo negros, latinos e pessoas de renda baixa.

    A evolução do tema nos EUA é particularmente interessante para o debate brasileiro. Não pela velha máxima colonizada, segundo a qual "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil", mas pelo fato de ser um país grande, com 300 milhões de habitantes, e uma democracia que continua, apesar dos pesares, influente. Até aqui as principais experiências de legalização têm ocorrido em nações de menores proporções, como Holanda, Portugal e, recentemente, o Uruguai.

    É verdade que não existe no Brasil liberdade federativa para deixar o assunto ser decidido localmente. E é fato também que iniciativas nesse sentido, mesmo sob um governo que se considera "progressista", como o do PT, mal se insinuam na esfera republicana, abafadas por velhos preconceitos ou chantagens político-religiosas.

    Enquanto isso, Tio Sam vai encarando os fatos. Será sinal de lucidez ou fumou um baseado e está ficando doidão?

    marcos augusto gonçalves

    Foi editor da 'Ilustríssima'. É autor de 'Pós Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada' e de '1922 - A semana que Não Terminou'.

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