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    Marcos Augusto Gonçalves - Marcos Augusto Machado Gonçalves

    O homem do Caju Amigo e os velhos tempos do Pandoro

    16/12/2014 03h00

    Toca o telefone.

    Atendo.

    "É o Guilhermino, seu Marcos, do Pandoro. Estava olhando minha agenda aqui e encontrei o seu número."

    "Oi, rapaz, como vai? Quanto tempo, tudo bem?"

    "Tudo bem. Estou vendendo um doce que a gente fazia lá, o panforte, sabe qual é?"

    Não lembrava muito bem, mas disse que sim, e ele prosseguiu explicando que não estava mais trabalhando como barman e que se eu estivesse interessado poderia entregar o doce em casa, um prazer me rever depois de tanto tempo.

    "Claro que sim, Guilhermino, pode passar, o prazer vai ser meu".

    Tudo acertado, mergulhei no túnel do tempo. O Pandoro, como sabem perfeitamente os bons paulistanos, foi um tradicional bar e restaurante da cidade, inaugurado na década de 1950, que funcionou na avenida Europa, número 60 –ali em frente ao Bolinha. Quando cheguei a São Paulo, em 1984, vindo do Rio, já era um ponto antigo, que preservava seus belos balcões de vidro e metal com aquela atmosfera "de época" e a dose certa de encanto decadente. Era frequentado por publicitários, jornalistas, artistas, famílias da área e os velhos "boys" da década de 1960, que estacionavam suas poderosas motocicletas em frente.

    Guilhermino foi o criador do grande clássico do bar, o Caju Amigo, servido com cachaça (ou vodka para os fracos), gelo e a fruta inteira enfiada no copo longo. Uma beleza. Fazia excelente companhia aos croquetinhos, quibinhos e pasteizinhos que esquentavam os motores antes dos inevitáveis sandubas, suculentos, tipo filé com queijo no pão francês.

    Do lado, escondidinho, havia um empório, que salvava os beberrões apanhados sem estoque no meio da noitada, com suas prateleiras de marcas importadas, licores, uísques, vodkas e cervejas.

    Revisito o Pandoro pela memória e lembro-me de muitos amigos, alguns que já se foram e outros que continuo a encontrar: Fernando Zarif, com seu esplêndido negrone em punho, Branco Mello, André Millan, Alê Primo, Barbara Gancia, Maurício Lordes, o inesquecível Alberto Marsicano e tantos e tantos outros. Era um desfile de gente animada, com direito a acenos para personagens fundamentais da Pauliceia, como nosso querido arquiteto Paulo Mendes da Rocha. De fato, "todo mundo" frequentava o Pandoro. Com aquele jeitão de La Coupolle, era o lugar certo para levar o amigo carioca ou a visitante europeia.

    Natural que o fechamento do bar, em julho de 2006, tenha causado consternação entre os frequentadores. Àquela altura, as coisas pareciam mesmo ir de mal a pior. A freguesia se dispersava e o mobiliário vinha sendo descaracterizado. Lembro-me de ter escrito uma crônica na Folha queixando-me da introdução de um balcão modernoso, com cara de display publicitário, em que figurava um luminoso de cigarro. O título que usei para o texto –"O Caixa do Pandoro"– era um trocadilho que costumávamos fazer, acho que inventado por Matinas Suzuki Jr. Os garçons gostaram do pito e penduraram o recorte do jornal no caixa, onde resistiu por um tempo.

    Dois anos depois de fechado, o Pandoro ressurgiu com outra cara, naquele estilo meio paulistão da "babacolândia "–como um célebre publicitário que eu conheço se referia ao mundo "show off "dos Jardins. Perdeu-se ali uma oportunidade de restaurar o bar, preservando o charme de seu aspecto tradicional.

    Menos mal que o Guilhermino tivesse permanecido por um período, assim como o cardápio básico, com os croquetinhos, pasteizinhos e –claro– o Caju Amigo. Cheguei a ir uma ou outra vez na versão repaginada, mas depois desisti. O lugar tinha perdido sua alma.

    Eis, então, que nesta segunda-feira toca a campainha de casa. Pego o interfone e ouço a voz do lado de fora: "É o Guilhermino". Abro a porta e lá está ele, mais velho, naturalmente, porém firme e jovial, com sua calva característica. Trazia os doces que encomendara. Convidei-o para entrar e sentar-se para um cafezinho. Não haveria outro assunto a comentar senão os velhos tempos. Lembra de fulano? Tem visto sicrano? Sabe quem faleceu? Sim, amigos, o tempo corre.

    Guardei os panfortes no armário e ele sugeriu, animado, antes de se despedir: vamos juntar um pessoal em algum lugar e eu faço o Caju Amigo. Claro! Já estou fazendo a lista. Depois eu conto. Se conseguir lembrar.

    marcos augusto gonçalves

    Foi editor da 'Ilustríssima'. É autor de 'Pós Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada' e de '1922 - A semana que Não Terminou'.

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