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    Marcos Augusto Gonçalves

    Frustrados com ministério acreditaram em avatar de Dilma

    30/12/2014 03h00

    Não causa surpresa que os nomes até aqui anunciados pela presidente Dilma Rousseff para compor o ministério de seu segundo mandato tenham causado frustração entre militantes petistas e entusiastas de sua candidatura. O clima de exaltação ideológica que marcou o ano e a campanha eleitoral propiciou um enfrentamento tão cerrado quanto fantasioso em suas premissas acerca da realidade política e econômica do país.

    É significativo, quanto a isso, que a imagem da presidente tenha sido substituída na propaganda eleitoral por um avatar pop composto a partir de uma fotografia da jovem militante revolucionária, de quatro décadas atrás, presa e torturada pela ditadura que combateu.

    A essa Dilma jovial e esquerdista, quase uma versão feminina do Che, adornada com óculos que lhe conferiam ares de idealismo compromissado, acoplou-se o famigerado slogan do "coração valente".

    Foi em torno desse avatar que se mobilizou a militância mais à esquerda, no intuito de evitar que a condução do país caísse em mãos da direita retrógrada representada por um playboy filhinho de papai (ou netinho de vovô) e –antes– por uma fanática religiosa que, a despeito de ter sido alçada por Lula ao primeiro ministério petista, degenerara após trocar a profissão católica pela evangélica e aderir ao capital financeiro, ou pelo menos ao banco Itaú.

    Contra tudo isso o avatar valente se oporia: à nomeação de um ministro da Fazenda ligado ao "neoliberalismo" e aos perversos banqueiros; à indicação de evangélicos homofóbicos para o primeiro escalão; à abertura de capital de bancos públicos, como a Caixa; e ao risco de se formar um governo que abrigasse em postos de comando os notórios aproveitadores fisiológicos e personagens de direita que atrasam o país e querem conduzi-lo a um retrocesso sem precedentes.

    Ocorre que a realidade não parecia, em nada, endossar tais esperanças –o que qualquer pessoa relativamente imune ao medíocre e pueril Fla-Flu em curso poderia notar.

    Bastaria, quanto a isso, seguir o valioso método de Karl Marx –que ninguém mais lê, pelo visto– e começar a analisar a situação pelas suas circunstâncias concretas. A começar pelo ministério do primeiro governo Dilma e suas alianças eleitorais, que já haviam incorporado um leque preocupante de oportunistas, oligarcas, direitistas do naipe de Edison Lobão, do bispo Crivela, do probo Collor e do exemplar Sarney.

    Ok, pode-se argumentar –sempre pode-se argumentar– que tais concessões teriam sido fruto do imperativo de preservar a "governabilidade" num quadro desfavorável de "correlação de forças". Agora, abria-se a perspectiva de um salto dialético: a confirmação do voto popular ofereceria a Dilma a chance de conciliar-se com seu avatar, assumir o leme e seguir com o barco no rumo da construção do socialismo pátrio ou seja lá o que se imagine ou delire nesse sentido.

    Mais uma vez, o exame dos fatos não poderia amparar tal acrobacia. A começar pelo erros de gestão da economia, que já havia atingido um estágio alarmante de desajustes. Claro que esses fracassos seriam negados como uma armação dos analistas do mercado, a serviço do capital e da mídia, como evidenciavam os índices de emprego, transformados em critério único e suficiente para assegurar a correção da política –o que apenas confirma a "ignorância desumana" da militância petista sobre assuntos econômicos, na expressão de Roberto Campos para qualificar a familiaridade de Ulysses Guimarães com o tema.

    O ajuste econômico era inevitável. E isso obviamente indicava que Dilma, a senhora real, teria de repisar o caminho de seu demiurgo, que, para enfrentar as adversidades nessa área, entregou a coisa para os profissas do Partido da Economia –como Henrique Meirelles e o aprendiz Palocci.

    Que Dilma governaria a economia com a "mão direita" era uma barbada.

    Adicione-se ao desastre da administração econômica do primeiro mandato, outra intempérie assustadora –essa com proporções tsunâmicas: a ampla e sistemática prática de desvios na Petrobras e, como se sabe, em outras estatais. Sim, o PT não inventou a corrupção e os tucanos nesse quesito não podem, de modo algum, posar de vestais.

    Contudo, a corrupção dos "outros" – o fato de que a oposição e, diga-se, aliados sejam igualmente inclinados a subtrair a nação– não bastaria para atenuar os riscos.

    Dilma, a tecnocrata, não a garota pop, costurou, então, um Ministério para tentar evitar o pior. E seguiu o método que se poderia notar como dominante: a troca de favores, a "realpolitik", as relações aviltadas que tão bem exemplificam a resiliência de nossa miserável cultura política.

    Que militantes e entusiasmados simpatizantes do avatar valente tenham se enganado, é compreensível. Espanta é que analistas políticos, a esgrimir com brilho seu espírito progressista na imprensa profissional, mostrem-se agora surpreendidos e traídos pelo fluxo dos acontecimentos. A fragilidade, para não dizer o primarismo de tais análises políticas, parece-me proporcional à sua captura pelo baixo nível do Fla-Flu –um sinal de pobreza intelectual.

    Bem, não posso deixar de ver que também estão em cena os "estômagos valentes", aqueles que sempre encontram uma justificativa para ver na latinha fétida o indício de um cavalo puro sangue por vir.

    marcos augusto gonçalves

    Foi editor da 'Ilustríssima'. É autor de 'Pós Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada' e de '1922 - A semana que Não Terminou'.

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