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    Marcos Augusto Gonçalves

    Rodízio no armário

    21/02/2015 02h00

    O mês chuvoso, como tem sido este fevereiro, vai reanimando as esperanças de que o governo do Estado possa adiar ou quem sabe evitar a implantação do rodízio de água em São Paulo. Segundo o noticiário, contribuem também para essa perspectiva menos pessimista algumas obras emergenciais, como a captação do esgoto da Billings para suprir parte da demanda.

    Ocorre que o rodízio já é uma realidade. E não preciso ir longe para constatar: na minha casa, na zona oeste da cidade, os horários de fornecimento vêm se estreitando dramaticamente nos últimos meses. Em outubro, quando retornei a São Paulo, depois de um ano fora do país, as torneiras respondiam até as 19 horas, quando a pressão passava a ser reduzida. Hoje, por volta das 15 horas a água evapora, e só retorna pela manhã. Ou seja, a cada mês, a Sabesp me entrega 15 dias. Recorro à caixa d'água para evitar o pior, mas nem sempre basta –tenho, então, que utilizar meu volume morto particular, armazenado em garrafas e recipientes.

    Em alguns bairros, a situação, como se sabe, é muito pior. Residências passam dias sem água, com o agravante de que muitas delas, de famílias de baixa renda, não possuem caixas para amenizar a seca.

    Temos na prática um quadro em que os cidadãos são submetidos a um regime desigual de sacrifícios, arbitrado de maneira opaca, para não dizer às escuras, pelo governo do Estado, que se recusa a retirar o rodízio do armário e explicitar seus critérios. É uma política de perfil autoritário, que sonega o direito da sociedade de conhecer em detalhes a situação e discutir um sistema de restrições que lhe pareça fazer sentido.

    Aceitaria de bom grado, por exemplo, ficar mais tempo com torneiras secas caso me fosse demonstrado que isso cumpriria uma função social no compartilhamento das restrições. Tal como a coisa está colocada, cria-se a aparência de que o racionamento é um problema que está por vir, quando já está instalado de maneira assimétrica e inapelável.

    Quanto a isso, li recentemente no blog da jornalista Laura Capriglione que a repórter María Martín, do jornal "El País", levantou a existência de contratos sigilosos de "demanda firme" firmados entre a Sabesp e cerca de 500 empresas. Por esses instrumentos, os signatários teriam garantia de fornecimento ininterrrupto de água com tarifas abaixo dos valores cobrados de outros consumidores –pelos cálculos do blog, a vantagem seria de 39%.

    Se alguns dos signatários deveriam, em tese, fazer jus a um tratamento especial, como é o caso de hospitais, causa estranheza que esse regime de privilégios, em vigor num momento crítico, beneficie empresas como o Bradesco, a Rede Record e a Igreja Universal. Até quando continuaremos a ser tratados pelo governador como cidadãos da categoria volume morto?

    marcos augusto gonçalves

    Foi editor da 'Ilustríssima'. É autor de 'Pós Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada' e de '1922 - A semana que Não Terminou'.

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