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    Marcos Augusto Gonçalves

    Brasil, nosso paraíso burocrático

    05/05/2015 02h00

    Transfiro minhas milhas do cartão de crédito para a TAM. "Não tenho mais o número do meu cartão fidelidade, isso é um problema?" –pergunto. "Não, o sr. pode usar o CPF. Em cinco dias úteis os pontos estarão disponíveis na companhia" diz o atendente. Putz... Cinco dias úteis?! Por que?

    Não tem jeitinho. Vai ficar meio em cima da viagem, mas tudo bem, vamos esperar para ver.

    Passam-se os cinco dias e no site da empresa aérea tento recuperar o número do meu cartão fidelidade usando o CPF. Um robozinho diz que vão me mandar por e-mail. Vejo então que meu endereço de e-mail cadastrado é antigo e não funciona mais.

    Simples: vou atualizar o endereço de e-mail no meu cadastro –e pronto.

    Mas não há opção para isso. Vamos então ao velho telefone.

    Atende aquela delícia de pessoa pré-gravada que me oferece tudo, menos o que preciso. Consigo, enfim, falar com um atendente. A ligação cai. Tento de novo, sou atendido, e fico sabendo que não é possível passar o número do meu cartão por telefone. "Por que não?! "O cartão é meu, as milhas são minhas e eu preciso viajar. "É para sua própria segurança, sr.", explica a atendente.

    Reclamo e ela vai consultar alguém. "Acho que vou conseguir; algum ser pensante vai permitir que eu tenha o número do meu cartão. "Sr., de fato não podemos passar o número. Mas o sr. pode mudar o endereço de e-mail no site"...

    Só que para isso eu teria que fazer um cadastro novo, e esperar dois dias úteis para receber o número.

    Ok, eu mereço. Para "minha segurança" a burocracia obrigou-me a pagar pelas passagens. Não pude usar as milhas.

    Burocracia, diga-se, de empresas privadas, que sempre proclamam sua maior eficiência na comparação com os embaraços do Estado.

    Bem, aqui não é preciso sair da cama para conseguir ser menos burocrático e irracional do que o setor público.

    Para encerrar a história, comprei as passagens com cartão de crédito. E a compra foi recusada pela operadora... claro, para minha segurança.

    Prevalece entre nós uma ideia de eficiência voltada antes para a proteção da lucratividade da empresa do que para os interesses do consumidor –ou do contribuinte, ou do cidadão, quando se trata de esfera pública.

    A pretexto de conter fraudes e evitar corrupção (só rindo), deixa-se o cliente em situação de risco ou enredado em exigências. Quem já não teve um cartão bloqueado, em situação crítica, quando precisava fazer um pagamento? E isso aconteceu no exterior?

    As pessoas são tratadas como suspeitas pelo Estado e pelas empresas. Somos sempre potenciais fraudadores e não potenciais seres honestos –como seria básico em sociedade mais civilizada e eficiente, na qual o mercado disputaria o consumidor, tratando-o muito bem– mesmo porque ele seria protegido por direitos que valem de verdade. E o Estado, por sua vez, livre desse nosso entulho ibérico, facilitaria os procedimentos, intrometendo-se o menos possível na vida e nas decisões das pessoas.

    É plausível que a precariedade da segurança pública e da Justiça, sob a forma de impunidade, também tenha alguma coisa a ver com isso. Já que não se reprimirá e punirá a fraude, é melhor preveni-la ao extremo surrealista. Burocracia elaborando a partir de burocracia num processo incontível de adição de carimbos, selos, estampilhas.

    Brasil, o paraíso disso.

    marcos augusto gonçalves

    Foi editor da 'Ilustríssima'. É autor de 'Pós Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada' e de '1922 - A semana que Não Terminou'.

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