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    Marcos Augusto Gonçalves

    Cruzada do atraso

    16/06/2015 02h00

    A escalada do moralismo religioso vai ganhando contornos perigosos na esfera pública, com a insistente tentativa de transposição, por parte de líderes parlamentares e políticos do pau oco, de preceitos da esfera confessional para a secular. A ofensiva, que contraria o princípio básico da laicidade do Estado, tem chamado a atenção de quem se preocupa com a preservação das liberdades civis e da democracia no país. O "furor sacrossanto" que se apodera da Câmara (na expressão do bom editorial desta Folha sobre o tema), sob os auspícios do evangélico Eduardo Cunha, vai chegando às raias do delírio –e nos faz lembrar Porfírio Diaz, o personagem de Paulo Autran em "Terra em Transe", alegoria alucinada da direita fascista, carola e hipócrita.

    Cunha, enrolado com a Lavajato e disposto a jogar um jogo fisiológico, intolerante e selvagem, não hesita em surfar na onda ultraconservadora de evangélicos, papa-hóstias e pistoleiros, para articular propostas regressivas, que pretende aprovar a toque de caixa.

    Diga-se que partidos e políticos formalmente defensores de posições republicanas, liberais ou progressistas, têm auxiliado, por oportunismo eleitoral, a semear os campos do fundamentalismo, ao emprestar prestígio e beijar as mãos de "bispos" e outras autoridades eclesiásticas em questões nas quais o Brasil, não por acaso, encontra-se na lanterna das nações civilizadas. "Feliz é a Nação cujo Deus é o Senhor", declarou a presidente Dilma na Assembleia de Deus, quatro anos depois de José Serra endossar o manto da Virgem Maria em sua triste e obscurantista campanha eleitoral.

    A Constituição brasileira garante a liberdade de culto, mas impede a submissão dos Poderes e das instituições públicas à legislação divina. A religião deve ser professada na esfera privada, como um direito do cidadão –e não servir de código para o regramento da sociedade e da vida dos indivíduos. Mesmo que posições de fundo religioso eventualmente representem setores majoritários da sociedade, não cabe ao Estado republicano impô-las a ninguém –não apenas por seu caráter laico, o que já seria suficiente, mas pela ideia de que a democracia é um sistema que deve conter tanto a tirania do príncipe, quanto a "ditadura da maioria" sobre os direitos das minorias.

    No afã de angariar votos e perpetuar-se no poder, os que poderiam se contrapor a essa escalada moralista tornaram-se reféns. Questões como a descriminalização do aborto na rede pública, legalização do consumo de drogas ou casamento entre pessoas do mesmo sexo, que fazem parte da agenda progressista ocidental, ficaram aqui guardadas no armário pelas lideranças políticas das quais se poderia esperar atuação menos oportunista e pusilânime. Esperemos que não surjam em breve leis que nos obriguem a jejuar, orar diariamente, frequentar rituais ou usar roupa branca às sextas-feiras.

    Outro aspecto crucial desse debate é o ensino religioso. Uma ação direta de inconstitucionalidade sobre o tema está por ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Diante do que prevê a Constituição, não há o que discutir: que seja vetado na rede pública e praticado apenas em instituições da esfera privada.

    Também polêmico para alguns, o uso de símbolos religiosos em repartições do Estado é problemático. Por mais que tenhamos sido Ilha de Vera Cruz e Terra de Santa Cruz, nada justifica a presença de crucifixos em espaços institucionais ligados aos poderes da República.

    Por fim, é hora de avançar na discussão sobre imunidades tributárias concedidas a igrejas. O enriquecimento obsceno de líderes religiosos e o charlatanismo generalizado são apenas a face acintosa do processo de mercantilização da fé, que, como se sabe, não vem de hoje.

    marcos augusto gonçalves

    Foi editor da 'Ilustríssima'. É autor de 'Pós Tudo - 50 Anos de Cultura na Ilustrada' e de '1922 - A semana que Não Terminou'.

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