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    Marcos Caramuru de Paiva

    Um tema para jantar

    29/12/2014 02h00

    Na China, não se celebra o Natal. Trabalha-se no dia 25. Mas, nas grandes cidades, amigos se encontram no período de festas e os namorados beijam-se diante de árvores natalinas: as "kissmas trees".

    Nesse espírito, saí para jantar em Xangai com um grupo num restaurante francês. Os chineses não costumam falar de política nessas ocasiões. Mas nessa noite, antes mesmo de recebermos os cardápios, a conversa enveredou surpreendentemente para o tema "democracia", com a maioria declarando a expectativa de ver um país mais aberto.

    Na hora de fazer os pedidos, alguém olhou para mim e disse ao garçom: ele antes. Pedi o carneiro e logo percebi a razão do privilégio. Todos pediram o mesmo que eu. Em seguida, perguntaram-me: o que você acha do nosso tema?

    O que os chineses mais apreciam na vida é a mesa. Quem já fez negócios com eles sabe que comer com interlocutores é essencial. Não comer significa perder o negócio, pagar caro, inviabilizar a parceria.

    E, na mesa chinesa, um pede por todos. Alguém assume a responsabilidade de escolher o que será servido e busca ordenar uma variedade de pratos que satisfaça todos os gostos. E quando é inevitável que cada um faça seu pedido, como num restaurante ocidental, a única alternativa é seguir um líder experiente.

    Minha resposta foi: como implantar a democracia se as pessoas nem querem escolher os seus pratos?

    A China move-se pelas máximas confucionistas. Uma delas diz que um grupo da elite governa. Se não é capaz de satisfazer a todos, a solução é trocá-lo por outro grupo de elite. Nas cidades chinesas –grandes e pequenas– há sempre um comitê consultivo do povo. Ele checa permanentemente se as pessoas estão sendo atendidas e satisfeitas.

    A mesa é apenas um exemplo. Há outros. Os jovens chineses sentem-se pressionados pela ideia de casar e ter um filho. Não seguir à risca o comportamento geral é considerado quase uma transgressão. Se o amor não chega, escolhe-se o companheiro por mérito. É assim a sociedade: sem religião, mas com padrões fortemente enraizados. Individualizar-se significa tomar risco.

    Diferentemente do processo econômico, que é rápido e tem seus rumos definidos, o político vai se alterar lentamente e para onde vai não está claro. É um reducionismo acreditar que as pessoas vão se tornar hedonistas com a riqueza e passarão a querer imitar regimes amadurecidos em outras partes do mundo, onde há uma história que os justifica.

    A China passa por transformações gigantescas. Os padrões de comportamento mudarão muito. O cidadão comum não entende em profundidade que a democracia tem ineficiências, que podem se revelar incompatíveis com a gestão de um país de 1,3 bilhão de pessoas. E que a vida democrática tem um lastro. Construi-lo significa derrubar outros valores que a sociedade ainda não mostra o desejo de alterar.

    A realidade mudará sempre que houver uma autoridade no comando que lidere o processo sem criar desarmonia. Como quem faz o pedido coletivo num jantar. E usualmente assume sozinho a responsabilidade, pagando a conta.

    Feliz 2015.

    marcos caramuru de paiva

    Escreveu até janeiro de 2015

    Diplomata, sócio e gestor da KEMU Consultoria, com sede em Xangai.

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