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    Marcos Troyjo

    Putin e seu 'Estado da União'

    21/03/2014 03h43

    "Onde há confusão, há lucro". Putin aproveitou os tumultos em Kiev e o vácuo de poder na Ucrânia para fazer valer antiga pretensão sobre a Crimeia.

    Terça passada, anunciou a façanha no Salão São Jorge do Kremlin, repleto de grandiosos candelabros e amplo mosaico étnico. Foi ovacionado junto à bandeira com a águia de duas cabeças que, a leste e oeste, vigia o colosso territorial de nove diferentes fusos horários.

    A hora do discurso foi escolhida para que europeus e americanos estivessem despertos. A transmissão lembrava os "Discursos sobre o Estado da União" proferidos pelo presidente dos EUA anualmente no Capitólio. Ocasiões que irradiam diversidade, coesão e força.

    Goste-se ou não, Putin fez história. Ante ONU e Otan boquiabertas, arrebatou território do tamanho da Bélgica. Assegurou para sua Marinha de Guerra as águas quentes do Mar Negro –essenciais ao ideal russo de projeção de poder.

    Quando Kruschev "cedeu" a Crimeia à Ucrânia, destacando-a da Rússia em 1954, imaginava construir pilar de comunhão entre as duas mais importantes repúblicas soviéticas. Kruschev nasceu na cidade de Kalinovka, fronteira entre Rússia e Ucrânia.

    Para compreender as afinidades étnico-nacionais naquela região, vale ressaltar que os eslavos gostam de definir sua "nacionalidade" menos em termos do lugar onde nasceram e mais em função do sangue de seus ancestrais.

    Por isso, após o referendo de domingo, a maioria russa da Crimeia disse estar "voltando para casa". Compartilha dos sonhos grandiosos de integrar uma "Rússia Imperial", a "Grande Rússia". Esse sentimento é percebido em todas as localidades do leste da Ucrânia em que há significativa presença étnica russa.

    Comparada com conflitos étnicos recentes, a Crimeia é café pequeno. Nada do horror que predominou na antiga Iugoslávia nos anos 1990. O problema maior é que, dada a posição geográfica, a Ucrânia acaba sofrendo os efeitos perversos do cabo de guerra entre Rússia e Ocidente.

    Isso se manifestou claramente na tentativa de atração da Ucrânia ao polo gravitacional europeu. Também na possibilidade de a Ucrânia vir a integrar a Otan. Ambos cenários repelidos por Moscou.

    A probabilidade de agressão entre Kiev e Moscou é pequena. A Ucrânia já botou o galho dentro. Iniciou retirada de militares da Crimeia. Politicamente estilhaçada e financeiramente quebrada, não tem condições de travar conflito armado de fôlego.

    O novo governo em Kiev terá de se consolidar com ajuda política e financeira da comunidade internacional. Não veremos a reedição de um confronto como o que opôs Rússia e Geórgia em 2008.

    Tampouco uma conflagração entre Otan e Moscou. A interdependência Rússia-Europa é forte. E o risco de engajamento militar do Ocidente, insuportavelmente alto.

    Em termos geopolíticos, a reintegração da Crimeia à Rússia é o evento mais importante do mundo pós-Guerra Fria. A despeito de enorme custo potencial, Putin termina a semana com a sensação de que seu "Estado da União" é forte.

    marcos troyjo

    Economista, diplomata e cientista social, dirige o BRICLab da Universidade Columbia em NY, onde é professor-adjunto de relações internacionais e políticas públicas. Escreve às quartas.

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