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    Marcos Troyjo

    Estados Unidos e China, estranhamento no topo do mundo

    08/06/2016 02h00

    Acontece nesta semana em Pequim o Diálogo Estratégico e Econômico Sino-Americano. Em sua sétima edição, trata-se do mecanismo mais formal de administração do condomínio global do G2 —EUA e China como superpotências do mundo contemporâneo.

    Embora Barack Obama não esteja presente às reuniões (o secretário de Estado John Kerry chefia a delegação de seu país), o "Diálogo" é o que mais se assemelha hoje ao que os encontros de cúpula EUA-URSS representaram durante a Guerra Fria.

    Ao contrário do embate Leste-Oeste, no entanto, um lado não visa à eliminação do outro. Não se trata portanto de um jogo de soma zero. E talvez hoje os fluxos de interdependência entre os dois gigantes sejam maiores do que os itens em que divergem diametralmente.

    Ainda assim, o "Diálogo" deste ano começa com estranhamentos vocalizados num nível inédito de clareza.

    Jack Lew, secretario do Tesouro dos EUA, também presente ao "Diálogo", anuncia a insatisfação das grandes corporações americanas com um ambiente de negócios cada vez mais hostil na China.

    Já o presidente chinês, Xi Jinping, num recado que vai além da economia e seguramente inclui também a crescente projeção do poder chinês no Pacífico e na Ásia Central, expressou que "há questões na agenda China-EUA que podem ser resolvidas mediante trabalho conjunto —e outras que não podem ser encaminhas no momento".

    Esse desconforto é revelador de ao menos dois movimentos a influenciar a relação Washington-Pequim.

    O primeiro, mais conjuntural, reside na atual campanha presidencial nos EUA, onde é particularmente virulenta a retórica contra a China.

    E não apenas isso se observa no campo Donald Trump. Hillary Clinton, até para não parecer maleável demais com os chineses, tem endurecido sua visão sobre qual deve ser a postura americana ante a ascensão chinesa.

    A segunda, de natureza mais estrutural, diz respeito à evolução da economia chinesa e como isso impacta seu papel nas relações internacionais.

    Nunca é demais lembrar que muito do atual sucesso chinês se deve ao aproveitamento de uma "janela geopolítica" nos anos 1970.

    A dupla Nixon-Kissinger enxergou a oportunidade de fraturar a ossatura do comunismo internacional ao oferecer um série de benefícios pontuais à China, como a outorga do status de "nação mais favorecida" às exportações chinesas.

    Todo o modelo exitoso de "nação-comerciante" adotado pela China —crescimento liderado por exportações e utilização dos sucessivos e enormes superávits comerciais como colchão de investimentos em infraestrutura— derivou desta oportunidade original facilitada à China pelos EUA.

    Tal dinâmica propiciou um grau de interdependência econômica entre os dois países que absolutamente inexistia há quatro décadas. Hoje os EUA são a principal fonte de investimentos estrangeiros diretos (IEDs) na China. E o mais importante destino dos IEDs chineses são os EUA. E é bem conhecida a enorme fatia que os chineses detêm nas mãos da dívida americana.

    Em igual medida, vivemos nestes últimos 38 anos (1978 é o ano da grande virada chinesa rumo à prosperidade) um espécie de nova e ampliada divisão internacional do trabalho, em que os principais polos foram crescentemente se organizando em torno de EUA e China.

    Nessa equação, cabia aos EUA o papel de inovação, o "laboratório" de design, pesquisa e desenvolvimento, o núcleo de mercados de capitais (também do tipo "start-up") e de produção de bens de maior valor agregado.

    À China, a função de "fábrica do mundo", amparada por uma baixa remuneração da mão-de-obra, câmbio propositadamente desvalorizado e um maciço aumento da renda nacional resultante também da população do meio rural para o urbano.

    Ora, essa divisão de funções tornou-se mais turva. Os salários na China crescem como fatia do PIB; nos EUA, caem. Os chineses mergulharam na economia intensiva em tecnologia e já disputam em várias áreas cabeça a cabeça com os EUA, sendo que em alguns setores, como energia solar ou do vento, são os chineses que detêm a liderança.

    Consequentemente, o paradigma econômico que vigorou durante quase 40 anos para as relações EUA-China encontra-se numa encruzilhada.

    E isso traz também reflexos ao paradigma geopolítico —já que a China cada vez mais dá sinais de que deseja permitir que sua ascensão se observe também no campo do "soft power", do financiamento do desenvolvimento para além de suas fronteiras e do fortalecimento de sua musculatura militar.

    Este foi o último Diálogo Sino-Americano da Era Obama. Os próximos prometem ser bastante mais repletos de armadilhas para um futuro cooperativo entre Washington e Pequim.

    marcos troyjo

    Economista, diplomata e cientista social, dirige o BRICLab da Universidade Columbia em NY, onde é professor-adjunto de relações internacionais e políticas públicas. Escreve às quartas.

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