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    Marcos Troyjo

    China quer assumir as rédeas da globalização

    23/11/2016 02h00

    Em minha coluna de estreia nesta Folha há pouco mais de três anos intitulada "As globalizações do G2", sugeri que "o perfil do mercado global nos próximos 20 anos resultará do embate de projetos concorrentes de expansão e influência esquadrinhados por EUA e China, o "G2" do mundo atual".

    Desde então, muitos acontecimentos corroboraram essa visão. Por um lado, durante a presidência Obama, os EUA buscaram negociar acordos de comércio e investimento com base não apenas na liberalização de tarifas e eliminação de quotas, mas no estabelecimento de padrões comuns.

    Os sócios, no Pacífico (por meio do TPP, Tratado da Parceria Transpacífico) e no Atlântico (mediante o TTIP, sigla em inglês para Parceria Transatlântica de Comércio e Investimentos), se predispunham a disputar o jogo da economia global a partir dos mesmos padrões para legislação trabalhista, proteção ambiental, propriedade intelectual, compras governamentais.

    No caso da investida no Pacífico, a estratégia dos EUA sob Obama era dotar o "Pivô para a Ásia" de sua política externa de uma grande frente econômica para contrapor-se, ou, na melhor das hipóteses, "modular" a ascensão da China.

    Tal arremetida econômica chinesa, como se sabe, se produziu com seus parceiros fazendo vistas grossas ao desdém que a China nutriu por seguir diretrizes internacionais no campo do trabalho, da sustentabilidade, das patentes e de políticas industriais clamorosamente favoráveis ao conteúdo local.

    A lógica da diplomacia econômico-comercial de Obama era clara: os EUA dispõem de vantagens na consolidação de cadeias globais de valor. Mais globalização, assim, significa mais competitividade para a economia dos EUA.

    E, se setores de menor valor agregado aqui e ali veem seus postos de trabalho migrar para "LCCs" (sigla em inglês para "países de baixo custo"), a prosperidade incremental da economia americana como um todo poderia filtrar recursos necessários para o retreinamento da mão de obra.

    Nessa linha, a política externa de Obama pouco se diferenciou da tradição dos EUA no pós-Segunda Guerra – a maior economia do mundo era também a mais vocal e atuante em prol de comércio mais livre.

    Durante a campanha de 2016 à Casa Branca, o agora presidente eleito Trump quebrou com essa trajetória em favor do livre comércio. E, num pronunciamento inequívoco nesta segunda (21) indicou que os EUA se distanciarão do TPP no "primeiro dia de seu governo". Com isso, em grande medida, os EUA despedem-se do tipo de globalização econômica e normativa que preconizaram durante décadas.

    E o "timing" de tal despedida não poderia ser mais curioso. Ele se dá em sincronia com a contínua expansão de outro processo globalizador, liderado pela China, e que teve avanços de enorme importância nos últimos dias em Lima, Peru. Ali realizou-se a reunião de Chefes de Governo da APEC (Associação para Cooperação Econômica da Ásia-Pacífico).

    Na Cúpula, o presidente chinês Xi Jinping foi categórico: "a China não fechará suas portas para o mundo lá fora; pelo contrário, vai escancará-la". E acrescentou: "vamos nos envolver cada vez mais na globalização econômica".

    Pequim deseja negociar uma grande área de cooperação econômica para o Pacífico, a Alcap (Área de Livre Comércio da Ásia-Pacífico). Lidera recém-criada agência para investimentos de infraestrutura na Ásia e o Novo Banco de Desenvolvimento, o banco dos BRICS. Capitaneia o projeto "One Belt, One Road", principal iniciativa de integração terrestre e marítima na Eurásia. Com tudo isso, além do conhecido interesse chinês na África e na América Latina, a China dá provas inegáveis de que sua extroversão é multidimensional.

    Com os EUA na linha de frente da globalização, a maior interdependência econômica se fazia acompanhar de valores – como democracia representativa e livre mercado, enfim, o "Ocidente" – que se queriam universais. É como se tal patrimônio intangível do Ocidente fosse uma "ideia em expansão".

    Já com China assumindo as rédeas da globalização, se existe muito que propor tendo Pequim como epicentro de comércio e investimentos, há menos em termos de valores chineses que sejam "exportáveis".

    O "Sonho Chinês", proposto por Xi Jinping desde que chegou ao pináculo do poder em seu país em 2013, é essencialmente nacionalista.

    Muito do retumbante sucesso chinês nesses últimos quarenta anos se deu por Pequim saber o que queria "do" mundo. E conseguiu implementar tal decisão com magistral eficiência – a ponto de a China provavelmente estar a apenas uma década de se tornar a maior economia mundial medida pelo PIB nominal.

    Se os EUA de fato se esconderem da globalização, a China terá cada vez mais de moldar discurso e ações para além de seu interesse nacional. Se pretender liderar a globalização, a China terá de dizer o que ela quer "para" o mundo.

    marcos troyjo

    Economista, diplomata e cientista social, dirige o BRICLab da Universidade Columbia em NY, onde é professor-adjunto de relações internacionais e políticas públicas. Escreve às quartas.

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