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    Marcos Troyjo

    Para equipe de Trump, 'protecionismo' não é palavrão

    04/01/2017 02h00

    Spencer Platt/Getty Images/France Presse
    O investidor americano Wilbur Ross, nomeado secretário de Comércio por Donald Trump

    A equipe comercial do presidente eleito dos EUA, Donald Trump, quer promover uma reviravolta na conotação de um dos termos mais demonizados no dicionário das relações econômicas internacionais: o "protecionismo".

    O tom negativo associado à palavra tinha sua função no contexto da Guerra Fria. O "mundo livre" (essencialmente EUA, Canadá, Europa Ocidental e Japão pós-1945), em contraposição ao bloco socialista, floresceria mediante maior intercâmbio comercial e seu apego normativo-ideológico a "mercados abertos".

    Protecionismo, ali, prestava-se à crítica de sistemas econômicos menos "interconectados" do que o do capitalismo ocidental. Ainda no quadro contemporâneo à Guerra Fria, protecionismo foi associado a estratégias de industrialização em diferentes partes do mundo –e particularmente na América Latina e no Sudeste Asiático - mediante políticas de substituição de importações.

    Como sabemos, protecionismo, nessa acepção, significou estatismo e insularidade comercial para os latino-americanos. Para os asiáticos (em especial, Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura), o conceito implicava um escudo temporário de proteção a indústrias nascentes –tudo no âmbito de um planejamento abrangente em que se estipulavam métricas de performance e prazos para competir em nível internacional.

    É, contudo, com a queda do Muro de Berlim e o desencadeamento de uma "globalização profunda", de finais dos anos 1980 à grande crise financeira de 2008, que o termo protecionismo recebeu sua maior vilanização.

    Países exportadores de commodities agrícolas apontavam o dedo ao protecionismo europeu –argumentando que, para um supermercado na Alemanha, era mais barato comprar uma vaca criada no Brasil e embarcada de classe executiva para Frankfurt do que os subsídios destinados à produção de uma rês em território europeu.

    Durante a globalização profunda, os integrantes do G7 acusavam países em desenvolvimento de protecionismo industrial e de manutenção de economias bastante fechadas.

    Mesmo no âmbito da relação comercial entre os países mais avançados econômica e tecnologicamente –de que são exemplos os vários contenciosos entre EUA e Japão em setores como aço e automóveis–, chamar o outro de protecionista era algo que pouco se distanciava de um xingamento.

    Essa conotação negativa de protecionismo é amplamente explicada pelo "código moral" da globalização profunda, período em que vigoram os valores do "Mundo Plano", famosa expressão do jornalista Thomas Friedman.

    Ou seja, o protecionista era antagônico a pilares do pós-Guerra Fria, como a expansão do comércio internacional, o aumento dos fluxos globais de investimento estrangeiro direto, os experimentos em integração econômica vertical (com blocos regionais como União Europeia, Nafta e Mercosul) e a consequente expansão das "chamadas cadeias globais de valor".

    Na terça (3), Trump anunciou o advogado Robert Lighthizer, conhecido defensor de medidas protecionistas por parte dos EUA (sobretudo em negociações com parceiros asiáticos) como representante comercial norte-americano (USTR, na sigla em inglês).

    Assim, o presidente eleito colige uma equipe em que também se destacam o investidor Wilbur Ross (que será secretário de Comércio) e o economista Peter Navarro (a chefiar o futuro Conselho Nacional de Comércio da Casa Branca). Ambos preconizam abertamente a necessidade de "proteger" a economia americana da competição desleal.

    Para Ross, durante décadas, a principal fonte de "deslealdade" no comércio internacional era o Japão. Para Navarro, o foco das distorções comerciais deslocou-se para a China. Ele argumenta que o Estado chinês subsidia injustamente sua indústria, o que teria levado os EUA a perderem sua base manufatureira. Navarro condensa muito de suas visões em livro e documentário intitulados "Death by China" ("Causa da Morte: China").

    No cenário que se vislumbra a partir dos estrategistas comerciais de Trump, protecionismo é menos algo "derrogatório" ou "detrimental". Para a futura administração da Casa Branca, protecionismo é recurso a um só tempo "legítimo", "realista" e "natural" na relação entre os protagonistas da economia global.

    Lighthizer defende a tese de que foi justamente o protecionismo advogado por Alexander Hamilton (primeiro secretário do Tesouro e um dos Founding Fathers) que permitiu a emergência do capitalismo industrial nos EUA.

    Nesse aspecto, o futuro representante comercial dos EUA valida as observações do economista sul-coreano Ha-Joon Chang, professor da Universidade de Cambridge, que questiona os cânones liberais do comércio em livros como "Chutando a Escada" e "Maus Samaritanos - O Mito do Livre Comércio".

    Neles, Chang analisa o "Milagre do Rio Han", a ascensão econômica –graças também ao protecionismo– da Coreia do Sul. Examina igualmente a trajetória de Grã-Bretanha e EUA, que, segundo o autor, só arremeteram pois em certos estágios de industrialização foram os países "mais protecionistas do mundo".

    Em 20 de janeiro, com a posse Trump, tudo aponta que os EUA inaugurarão oficialmente uma filosofia em que o livre comércio, longe de promover eficiência dos mercados, é principalmente um veículo para a ascensão econômica e militar de potências "desonestas" como a China.

    Nesse mundo, ser comercialmente protecionista, como aventam os altos conselheiros de Trump, não é algo de que se envergonhar. No conjunto de valores da nova Casa Branca, mais do que legal e necessário, o protecionismo é sobretudo louvável.

    marcos troyjo

    Economista, diplomata e cientista social, dirige o BRICLab da Universidade Columbia em NY, onde é professor-adjunto de relações internacionais e políticas públicas. Escreve às quartas.

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