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    Mariana Lajolo

    A ponta do iceberg

    13/11/2015 02h00

    A existência de esquemas complexos para dopar atletas não é novidade. O que impressiona no recente escândalo envolvendo a Rússia é o envolvimento direto do governo e das autoridades esportivas para acobertar os casos. Quem deveria ser responsável pelo controle da trapaça era, na verdade, o maior trapaceiro.

    Este é um dos pontos mais delicados da cruzada contra o doping. O poder de testar e punir os atletas está nas mãos de quem também se beneficia diretamente de seus feitos.

    A engrenagem russa assusta. Segundo investigação da Wada (Agência Mundial Antidoping), até agentes da FSB (a polícia que substituiu a KGB) atuavam para pressionar os responsáveis por testes antidoping. O laboratório russo destruiu 1.417 amostras antes da visita dos investigadores. A agência antidoping do país cobrava propina para ignorar resultados positivos, e atletas usavam identidades falsas durante treinamentos da seleção para escapar dos testes-surpresas feitos fora de competição.

    O esquema talvez só seja comparável ao da Alemanha Oriental no período da Guerra Fria –estima-se que, entre os anos 60 e 80, 10 mil atletas estiveram em um programa sistemático de uso de doping com suporte do governo.

    Mas é preciso calma antes de concluir que os russos são os únicos vilões da história. O novo escândalo de doping é apenas a ponta de um iceberg, que envolve atores poderosos.

    A própria IAAF, federação internacional de atletismo, está atolada até o pescoço em suspeitas de acobertamento de centenas, talvez milhares, de casos.

    O jornal inglês "Sunday Times" e da TV alemã ARD/WDR mostraram que 146 medalhas obtidas em Mundiais e Olimpíadas na última década podem ter ido para atletas dopados e acusaram a IAAF de fazer vistas grossas a resultados adversos. Logo após a denúncia, a entidade anunciou ter refeito testes em amostras colhidas nos Mundiais de 2005 e 2007 e encontrado 32 novos positivos –a urina e o sangue têm sido guardados na esperança de que o desenvolvimento da tecnologia ajude na detecção de novas substâncias.

    O ex-presidente da IAAF, Lamine Dacke, que ficou no cargo por 16 anos, está sendo investigado por suspeita de ter recebido € 1 milhão para encobrir resultados adversos de atletas russos.

    O atletismo e a Rússia estão na mira da Wada. Mas se olharmos as estatísticas da própria agência, eles parecem estar fazendo um bom trabalho. No último ano, foram realizados 283.304 exames no mundo. O atletismo responde por pouco mais de 9% do total e encontrou 261 casos positivos. A Agência Antidoping Russa só perde para a China em testes em 2014: 12,5 mil. As amostras foram colhidas, mas os resultados divulgados são reais ou apenas refletem o interesse de quem fez o exame?

    E se na Rússia, onde os testes acontecem, há tantas falhas e manipulações, o que dizer de países em que o sistema antidoping vem sendo criticado há anos? Quênia e Etiópia, tradicionais nas provas de resistência, por exemplo, já estão na mira das autoridades. A Jamaica, terra da velocidade, também.

    O doping não é problema de um país ou de uma modalidade só. Está, infelizmente, disseminado. E enquanto o controle estiver nas mãos de quem lucra com o esporte, será difícil confiar 100% nele.

    Mariana Lajolo

    Escreveu até setembro de 2016

    Foi repórter e editora-adjunta de "Esporte". Cobriu a Olimpíada de Pequim-2008 e de Londres-2012, os Jogos Pan-Americanos do Rio-2007 e Guadalajara-2011.

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