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    Mariliz Pereira Jorge

    Parar de viver é de matar

    22/05/2014 02h00

    Pode ser uma casa, um trabalho, uma cidade, um amor. Fechar um ciclo e começar outro é sempre difícil. Mesmo que seja o que a gente mais quer na vida.

    Há dois anos, eu fiz um bate-volta entre São Paulo e Rio para uma entrevista de trabalho. Só avisei minha mãe. Vai que eu morro e ninguém sabe onde estou. Achei que seria aquele lero-lero, entraremos em contato, obrigada por ter vindo. A gente te quer, escutei da minha nova futura chefe. Passei a noite sem dormir. Entrei no avião para voltar para São Paulo. Como assim, vou mudar de casa, de cidade, de trabalho, de amigos, de tudo? Fui vomitar no banheiro. Disse à comissária que poderia ser gravidez. Mentira, mas preferi que ela pensasse que era isso a achar que eu estava de pileque às sete da manhã.

    Eu sei porque me menti. Eu sabia que teria que enfrentar olhares, interrogações e justificar que iria mudar minha vida de novo. Garota, você não sossega, já não está bom?

    Não.

    Acho que tudo começou quando minha mãe me colocou sozinha dentro de um ônibus para visitar meus avós, que moravam em Floripa. Eu tinha 12 ou 13 anos. Não parei mais. De viajar e de começar de novo. Morei em seis cidades, de três diferentes países.

    Com 17 anos, arranjei um emprego numa videolocadora, deixando meu pai contrariado. E quando senti o gosto da liberdade que o dinheiro dá, emendei um trabalho no outro. Fui gerente da boutique de carnes de uma prima rica. Com 19 anos, vendia cestas de café da manhã com uma amiga. Ainda na faculdade, fretava ônibus, enchia de amigos e fazia excursões pra Oktoberfest. Pagava as despesas e ainda sobrava bastante.

    Parece que foi ontem.

    Fiz estágio, me formei, abri uma empresa, fechei, trabalhei no maior jornal do país. Eu tinha dinheiro para dar entrada num apartamento (nossa, como o dinheiro valia) ou para passar um tempo, um bom tempo, viajando sem economizar. Pedi demissão pra ganhar o mundo. É um equívoco, ouvi da minha chefe.

    Vendi os móveis, fiz as malas. No dia que o carreto chegou, encontrei Dalva, minha fiel escudeira, chorando em cima da tábua de passar roupa, na área de serviço. Não chore, eu estou feliz, toda mudança é boa, disse para ela, tentando me convencer. Fui para a sala, fechei a porta e escorei na parede o corpo e o medo que bateu de repente. Claro que dá medo. Mente quem diz que não.

    Seis meses de mochila na Europa, me apaixonei quando cheguei na Austrália –pelo país e por um local. Resolvi ficar. Paguei um curso que me dava dois anos de visto e me vi com sete dólares no banco. Dura, mas feliz da vida, fui trabalhar de garçonete. Menti que tinha experiência. Na primeira noite, derrubei uma bandeja cheia de taças em cima de um cliente. Tive sorte de não ter matado alguém. Fiz bico de guia de turismo, e cuidei de 35 adolescentes num programa de intercâmbio.

    Larguei tudo, voltei para o Brasil. Em seis anos pedi demissão três vezes. Desde lá já namorei, fiquei, me amiguei, terminei, enjoei, levei e dei pé na bunda, levei e meti chifre.

    Quem disse que você tem que ser a mesma pessoa a vida inteira quando pode ter muitas vidas numa vida só?

    Parece que sobra coragem, desapego, espírito livre. Mas o que move as minhas e as mudanças de gente inquieta nem sempre são sentimentos tão nobres. A gente passa a vida tentando descobrir quem é e o que quer. Não sei o quanto disso é apenas uma insatisfação crônica. E volta e meia eu me pego fazendo as mesmas perguntas, arrumando as malas, procurando novos caminhos, ansiando pela dor da ruptura e pela magia do recomeço.

    A gente olha para o passado e parecem caber duas vidas naqueles anos. Quando completar 100, vou descobrir que sou uma gata de tanto que já vivi. Se a vida é uma só, melhor então fazer o máximo dessa vez. Até que chegue o dia que tudo se acalme, tudo se ajeite e a gente se sinta feliz do jeito que está.

    Quando chega esse dia, meu Deus? Quando vou cansar de aprender, de tentar, de descobrir, de me encantar e de mudar tudo que não está do jeito eu quero –ou imagino? Sossegue o facho, já está na hora. Mas que hora é essa? Tem ainda muito. Eu peço e vem. Eu digo que estou pronta e acontece. Não exatamente na hora que eu quero. Tem espera, tem impaciência, tem desilusão quando tudo demora ou chega diferente.

    Eu invejo quem acorda, toma suco verde, trabalha, ganha bem, aplica na bolsa, tem saúde, come legumes e hortaliças no almoço, volta pra casa, assina Netflix, tira férias uma vez por ano, vai no sambinha, almoça com os pais no Natal, troca o carro a cada dois anos, já quitou a casa própria e um dia morre. Tudo assim programadinho.

    Olho fascinada para esse mundo onde tudo tem hora, onde tudo se encaixa por mais desconfortável que seja. E cada vez que minha vida fica meio parecida com isso, durmo mal, tenho pesadelos e acordo assustada. Não tem sofrimento, mas não tem graça. Então, quero que alguma coisa aconteça, mude, vire do avesso.

    Toda mudança é dolorosa. Todo recomeço castiga. É uma relação sadomasô. Dói, mas causa um prazer enorme. Então, sossegue. Mas eu não gosto quando o sono fica quieto e a vida parada, quando me pego tateando no escuro sem saber pra onde ir. Vida, me tire o sono, me dê mais um pouco, eu aguento o tranco. Só não dou conta de vida morna, sem graça e sem sacolejo. Recomeçar cansa, mas parar de viver é de matar. O que eu não conheço ou não experimentei há de ser ainda o melhor da vida.

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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