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    Mariliz Pereira Jorge

    O leitor disfuncional

    21/08/2014 02h18

    Na semana passada, resolvi fechar um dos canais de comunicação que tenho com os leitores depois que recebi uma mensagem privada de uma garota. As palavras são impublicáveis, mesmo num veículo mais liberal como a Folha.

    Não foi a primeira. Recentemente, um cara escreveu inbox, claro, que esperava ver meu nome numa página policial, vitima de crime passional. Tudo porque ele não concordou com alguma coisa que escrevi.

    Teve também um que disse que iria jogar todos os CDs do Seu Jorge no lixo e que mais ninguém da família Jorge entraria na casa dele. Tive que rir. Dá para ter uma ideia do tipo de maluco, de gente doente e raivosa que andam soltos por aí.

    A internet virou o Umbral na terra. O lugar onde as pessoas vão purgar suas imperfeições, sua face mais nojenta, odiosa - ou só idiota mesmo.

    Uma passada de olho nos comentários de qualquer notícia dá para ver que o mundo, enfim, mostra a sua cara. Os mesmos que acusam quem quer que seja de idiota, machista, arrogante, preconceituoso, ridículo, sectário, agressivo, são idiotas, machistas, arrogantes, preconceituosos, ridículos, sectários, agressivos na hora de dar sua opinião.

    Me pergunto se essas pessoas teriam coragem de falar frente a frente as mesmas coisas sem pé nem cabeça, fazer as mesmas ameaças que se sentem à vontade para fazer quando estão atrás de uma tela de computador. Duvido.

    Na vida real, quase todo mundo quer ser legal, simpático e preza pelos bons relacionamentos. Na internet, muitos se dão ao direito de se achar melhores do que os outros. Mesmo que sejam. Mesmo que não sejam. E se eu não gosto do que você diz posso tratá-lo com desprezo e falta de educação. Não me contento em discordar, preciso deixar a barbárie vir à tona.

    Eu sou ótimo, sou politicamente correto, mas você merece uma lição. Só estou agindo assim porque você me provocou e escreveu coisas de que eu não gostei.

    Posso destilar raiva, prepotência e arrogância, falar mal da sua mãe e mandar você fazer aquilo que um monte de gente mandou a Dilma fazer. Achei uma falta de educação com a Dilma, mas você não é a Dilma, nem te conheço, então pode ir tomar no cu mesmo. Eu tenho que garantir o meu pensamento em detrimento da sua liberdade de pensar diferente de mim.

    Nunca foi tão fácil se informar, mas ninguém está interessado.

    Só quero ler coisas que confirmem minhas crenças, minhas ideologias e minhas convicções. Trago na minha bagagem uma mala enorme de esperanças, frustrações, decepções e não estou interessado em nada que não confirme a opinião que tenho sobre a vida, sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre a queda do avião do Eduardo Campos, sobre o novo clipe da Valeska Popozuda, sobre os conflitos em Israel, sobre o bigode do galã da novela, sobre o Jamie Oliver não gostar de brigadeiro.

    Tenho opinião pra tudo. E não me contento em debater com os meus amigos. Não chamaria meus amigos de idiotas, ridículos, machistas, arrogantes, preconceituosos, agressivos. Não faço isso na vida real. Só na internet. De preferência com quem não conheço, muitas vezes sobre assuntos que não domino.

    Muito prazer, eu sou o leitor disfuncional, uma praga mais triste do que o analfabeto funcional. Eu sei ler, assino revistas, leio todos os sites, mas entendo o que quero do que está escrito aí, mesmo que não tenha entendido nada, mesmo que só tenha lido o primeiro parágrafo, mesmo que não tenha lido e alguém só tenha me contado. Ai de você se não for politicamente correto, sexualmente correto, se não fizer a segunda-feira sem carne e se chamar Seu Jorge de negão –mesmo ele sendo da família.

    Vou gritar, espernear, vou xingar até sua última geração. E o melhor, daqui do meu mundinho perfeitinho onde as coisas são só do jeito que eu quero e ninguém pode me contrariar. É isso.

    Entendeu ou quer que desenhe?

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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