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    Mariliz Pereira Jorge

    Tudo por um namorado

    DE SÃO PAULO

    02/10/2014 02h00

    'Um homem antissocial, ateu e que odeia criança, não muda, não é?', me perguntou uma amiga. 'Ele não gosta dos meus amigos, acha que eu deveria ser mais discreta, cortar o cabelo. Eu fico confusa com tudo isso, me acho fraca, e penso que deveria abrir mão de tudo por um relacionamento'. Pensei: saia correndo, troque de telefone, mude de endereço e pare de frequentar os mesmos lugares. Isso já não deu certo.

    Mas não falei.

    Eu já fui essa garota. Quase todas nós já estivemos nesse papel. A gente se apaixona ou está carente ou decide que é hora de ter uma história estável e passa a aceitar o antes mal acompanhado do que só como se fosse a única saída. Se afunda até o nariz para encarnar a vida de outra pessoa, a pessoa que o outro gosta, que não tem nada a ver com o que somos. Nos distanciamos cada vez mais de nós mesmas para sermos amadas por uma pessoa que não gosta do que a gente é de verdade.

    Já vi acontecer com todo mundo. Uma amiga, cada vez que mudava de namorado, variava a roupa, a cor de cabelo, a seleção de música no iPod, trocava cerveja por suco verde. Ela, uma das pessoas mais urbanas que eu conheço, começou a usar botas e a passar os finais de semana numa fazenda. Depois teve o cineasta e vieram os jeans, o All Star e os baseados. Com o personal trainer, ela desapareceu porque dormia às 22h pra acordar antes de amanhecer e ir à academia. Ficou sarada, mas morria de saudade da balada e da birita. Ninguém mais sabia quem ela era, afinal. Nem ela.

    Cansa demais. A gente fica exausta de interpretar, de querer agradar. Passamos o tempo todo pisando em ovos porque nunca sabemos se o que fazemos, o que vestimos, o que falamos é o esperado. Fingimos ser uma pessoa que a gente nem sabe como é direito. É um estado de alerta constante e uma frustração atrás da outra. Aos poucos a fantasia se desfaz e não sobra nem a abóbora pra contar a história.

    Tive uma relação de dois anos exatamente assim. Eu me iludi e ele se enganou. No começo, fingi que não era comigo quando disseram que a gente não tinha nada a ver um com o outro. Já havia namorado bastante e vivido a solteirice o suficiente, tinha vontade de ter o mesmo alguém todos os dias. Ele me seduzia com um relacionamento estável e eu fazia o possível para nos convencer de que eu era tudo o que ele queria.

    Aposentei meus saltos porque ele preferia tênis. Parei de usar batom. Engolia o cheiro de cigarro apesar de detestar. Trocamos as baladas pela Globo News. Ele queria passar os dias lendo no parque e eu sonhava com caipirinhas na beira da praia. Mudei meu guarda-roupa meio blogueira, meio coxinha, meio qualquer coisa que eu estivesse a fim por um visual hipster. Para minhas amigas eu era referência, para ele, careta. Deixei o cabelo curto, escureci e andava com as unhas sempre com cores esquisitas. Hipster. Ele gostava assim.

    Os dois ignoravam a falta de afinidade, de princípios, de objetivos em comum.

    Ele foi egoísta e eu manipuladora. Ele só pensava nele e eu fazia tudo para agradar porque tinha um objetivo: fazer aquela história errada dar certo. Ele se aproveitava da minha carência e desfrutava de uma vida legal. Eu me aproveitava dele pra brincar de casinha. Abri meu apartamento, apresentei meus amigos e dei a ele uma vida pra lá de descolada sendo meu namorado. E eu tinha um namorado pra desfilar por aí.

    Nunca gostei dele de verdade, minha terapeuta dizia. Mas ele era o personagem disponível que faltava na história que eu queria para mim naquele momento. Respirei aliviada quando acabou. Levei um chifre, sofri com a falta de lealdade, mas dei graças por ter finalmente um motivo, já que não tinha coragem, para acabar com aquele circo que nós dois tínhamos armado. Dois palhaços.

    Me lembro da primeira manhã de sábado quando acordei sozinha, atravessada na cama queen size e pensei, sorrindo: como é bom não ter que pensar o que 'nós' faremos hoje. Era eu comigo mesma. Então, me dei conta que não tinha planos. Estava perdida sem saber quem eu era, o que queria, as coisas das quais gostava.

    Levei um tempo recolhendo meus caquinhos. Fui aos poucos me reencontrando em minhas roupas abandonadas, em meus batons, em minhas músicas, nos lugares que tinha deixado de ir. A cada dia a gente se reconhece um pouco mais. E percebe que antes só do que viver uma história de faz de conta.

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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