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    Mariliz Pereira Jorge

    Como é difícil dizer eu te amo

    23/10/2014 03h00

    'Você disse o quê?'

    'Que eu te amo.'

    Silêncio.

    'Isso vai ter revanche', foi a única coisa que pensei.

    Rimos e nos beijamos. Suspirei, aliviada e protegida pela escuridão do quarto. Meu coração dava cambalhotas, porque é assim que ele fica quando está feliz ou confuso. Corri para o banheiro para que ele não sentisse meu peito parecendo a Orquestra Voadora, no primeiro dia de Carnaval, e não visse minhas bochechas num vermelho pimentão.

    O escuro é o cúmplice camarada dos 'eu te amo' não correspondidos. Ele alivia o constrangimento mútuo. Desacelera o tempo para que dê tempo que tudo seja esquecido quando amanhece. Pode ter sido sonho. Pode ter sido muito vinho. O dia vem com suas buzinas, marteladas, gente vindo e indo, logo ali sob a janela. É muito barulho para revanche, não tem clima pra 'eu te amo', ainda mais quando não tem mesmo clima.

    Sempre tive medo do 'eu te amo', porque muitas vezes o 'eu te amo' traz o medo que não existia. O medo de perder o amor, o medo de se perder de amor, o medo que o amor se perca por aí. Então, eu fugia do 'eu te amo'. Fugia do medo e do medo de ter medo. E ficava tudo uma música baixinha e tranquila no meu coração. Vida que segue sem tropeços ou corações partidos. Que ilusão.

    Eu evitava o 'eu te amo', porque nem sempre sabia se já era 'eu te amo' para mim. E se não fosse, como eu poderia voltar atrás? Não tem como voltar atrás no 'eu te amo' sem voltar atrás no amor recém-declarado. Preferia ficar só na paixão, no eu gosto muito de você, no máximo eu te adoro. É sincero, sensato e indolor.

    Já pensou ter que dizer: desculpe, mas eu me enganei, ainda não te amo, pode ser que daqui um tempo, mais ainda não, espere mais um tempo. 'Eu te amo' é muito para mim, é muito cedo para nós dois.

    Sempre tive dificuldade com esses momentos, acho até que os evitava. O 'eu te amo' transforma em compromisso, em coisa séria, o que era só paixão, o que era só faísca de amor. E a gente se basta com esse lampejo de amor durante muito tempo, porque só o lampejo nos basta. Não sei por que tem que ter 'eu te amo' para complicar.

    Eu nem era blasé. Nem parecia blasé, porque de blasé não tenho nada. Era só distração. E sempre que eu me sentia na iminência de um 'eu te amo', eu me distraía. Eu lia. E todo mundo sabe, minha mãe sempre conta pra todo mundo, que quando leio não adianta falar comigo. Muito menos vir com essa de 'eu te amo'.

    A leitura me protege do mundo, me protege das pessoas, me protege dos 'eu te amo' fora de hora. A minha hora nem sempre é a hora do outro. O outro não sabe disso e acha que hora do 'eu te amo' é qualquer hora, que amor tem pressa. Eu não tenho. Nunca tive. Mentira. Mas preferia esperar.

    Até que um dia você acorda com o 'eu te amo' entalado na garganta. Você quer dizer para o outro, quer dizer para todo mundo, quer escrever na areia da praia, com giz de cera enquanto almoça no Ráscal, com palitos de fósforo, no vidro embaçado do chuveiro. É um 'eu te amo' que não cabe mais dentro de você.

    Então, você vê sua vida num timelapse. Os dias vêm e as noites vão. Você sobe na balança, não é retenção líquida, é retenção de 'eu te amo' dentro de você. Você quer colocar tudo para fora, mas fica com medo de colocar tudo a perder. E espera.

    E continua brincando de cíclope, como no Jogo de Amarelinha, de Cortázar. E reza para que o outro também esteja entalado. Você se aconchega naquela conchinha desajeitada. Seu ombro dói, o braço dele fica dormente. Você suspira, ele resmunga em sua orelha. Você responde: boa noite, também. E ele diz: eu te amo. E desde, então, você se apaixonou por dizer 'eu te amo' o tempo todo. E vocês foram felizes para sempre.

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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