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    Mariliz Pereira Jorge

    O Havaí não é aqui

    24/01/2015 02h00

    Em 1986, eu era uma pirralha, de cabelos oxigenados, biquíni asa-delta e paciência sem fim para torrar o saco dos meus pais por uma carona até a praia da Joaquina, em Florianópolis.

    A Hang Loose, marca de surfe, patrocinava pela primeira vez uma etapa do circuito mundial. Quem viveu as areias lotadas, os congestionamentos, a babel de sotaques, tinha certeza de que o Brasil seria um dos maiores berços de campeões de surfe. Tem praia que não acaba mais, sol a maior parte do ano, e prancha é igual a bola de futebol, todo mundo arranja uma quando quer entrar no jogo.

    Não foi isso que aconteceu. Desde o dia em que estreei nos campeonatos, lá se foram quase 30 anos para que víssemos um brasileiro chegar ao topo do surfe mundial, em que australianos e americanos se revezam há décadas.

    Não é à toa. Nos dois países, as cidades costeiras têm escolas, inclusive públicas, com aulas de surfe entre as opções de atividades física. Há inúmeros programas de férias com surfe no menu. Em dois anos morando na Austrália, vi mais gente dentro da água do que fora, em muitas praias.

    Ouvi com desânimo Gabriel Medina, que nem era nascido em 1986, dizer que espera que agora o surfe tenha mais destaque no Brasil. Imagino o misto de alegria e frustração de atletas que nunca foram tão longe, mas dedicaram suas vidas a esse esporte, que tinha tudo para ser popular, mas não é.

    Você sabia que no ranking da World Surf League há seis brasileiros entre os 30 melhores, além de Medina? Quase ninguém sabe.

    Infelizmente não é apenas em relação ao surfe que permanecemos tão abandonados e alienados. Aqui o esporte ainda é uma escolha de vida apenas de gente teimosa, com muito fôlego e disposição.

    Achamos graça da criança que sonha em ser jogador de futebol, de basquete, lutador de jiu-jítsu. Respiramos aliviados quando prefere ser advogada, dentista ou qualquer carreira que garanta bom futuro.

    O futebol, apesar da popularidade, ainda é considerado o passaporte do pobre para o mundo dos ricos. O surfe talvez nunca deixe de ser visto como passatempo de vagabundo. Poucos veem nobreza em quem dedica seus dias a pegar onda. Mas é um pensamento que reina em um país em que atletas não são valorizados. A não ser que já tenham acumulado prêmios e patrocínios.

    Quantos Medinas há por aí? Talvez poucos. E mesmo os poucos acabam desistindo no meio da onda por falta de apoio, de patrocínio, por falta de interesse do público.

    Kelly Slater, 11 vezes campeão mundial de surfe, falou nesta semana que o Brasil é um dos países mais bonitos e mais assustadores onde já esteve. Assusta mesmo só ouvir falar de Medina porque foi campeão. Ou de Ricardinho, considerado um dos melhores pegadores de tubo do mundo, só porque morreu.

    Assusta mesmo pensar que sobrou pouca coisa da pirralha oxigenada que curtia surfe em meados dos anos 80, mas que o esporte continua morrendo na praia.

    Neste sentido, estamos mais pra Haiti do que para Havaí. Ao contrario de Medina, não consigo ser otimista. Gostaria de estar errada.

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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