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    Mariliz Pereira Jorge

    Tudo puta e viado

    05/03/2015 02h00

    Desde criança, a porta da casa de praia dos meus avós vivia aberta. Vinham amigos, amigos dos amigos, de todo tipo, de macumbeiro à santa, falando ôxe ou tchê, homem, mulher, mais novo, mais velho, gente da cidade, caiçaras. Meu avô adorava a fauna festiva que circulava pela casa nos meses de verão. Só não tolerava gente sem senso de humor e torcia o nariz pra quem ficava na água ou no suco. "Não dá pra confiar numa pessoa que não bebe."

    E claro que tinha gay. Sempre tem gay quando tem muita gente junto. Sempre tem todo tipo de gente quando tem muita gente.

    Não me lembro quando aprendi o que era ser gay. Eles sempre estiveram por aí. Na minha vida e na vida de todo mundo. Então, não havia nada para ensinar, para explicar, para aceitar. Apenas era assim. Continua cada vez mais assim.

    Fui criada numa cidade pequena, fiz primeira comunhão e crisma, mas nunca ouvi dos meus pais a palavra pecado. Conceito de errado lá em casa era desrespeitar os mais velhos, tirar nota baixa na escola, pendurar a conta na venda. Errado lá em casa era mentir, pegar emprestado e não devolver. Nunca ouvi deles que era errado uma pessoa gostar da outra.

    Cresci sem esse tipo de preconceito certamente porque fui uma criança livre dos conceitos que transformam adultos em pessoas mesquinhas, egoístas e tacanhas.

    Tenho muitos amigos. Branco, preto, japonês, pobre, rico, careta, doido, vegetariano, defensor dos animais, petista. Essa convivência só enriquece a nossa existência medíocre, amplia os horizontes para além da circunferência do nosso umbigo. A gente cresce e deixa de ser um pouco besta.

    E dentro desse leque de branco, preto, japonês, pobre, rico, careta, doido, vegetariano, defensor dos animais, petista, alguns são gays. Não sei dizer quantos, nunca contei, nunca fez a menor diferença, porque nunca dividi amigos de amigos gays. Nunca apresentei um amigo gay como se fosse uma bolsa Prada. Esse é fulano, meu amigo gay, da coleção inverno 1992.

    Tudo certo. Claro que não.

    Até quando viveremos numa sociedade em que as pessoas se acham no direito de meter o bedelho na vida alheia, decidindo se João pode se casar com José, se Maria e Joana podem adotar um filho? Gente passando fome, morrendo em hospitais que se desmancham, crianças que saem da escola sem saber ler, abandonadas em creches ou ao deus-dará, corrupção goela abaixo e o debate ainda patina em questões que deveriam ter ficado no século passado.

    Dia destes fui chamada de puta por alguns leitores que não gostaram quando disse que mulher também divide homem para namorar, para trepar e pra casar. É, o mundo não é quadradinho, amarelinho e azulejadinho como muita gente quer. Tudo puta e viado, disse mais de um. Tudo, não. Mas muitos são. Ainda bem.

    Nessas horas, só consigo lembrar de uma plaquinha na cozinha da casa de praia do meu avô, usada em momentos propícios, com gente muito sóbria, muito chata ou desse tipo que reclama que só tem puta e viado. 'Sua presença não está agradando, finja que vai cagar e saia de fininho'. Simples assim.

    Saudade, vô Dag.

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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