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    Mariliz Pereira Jorge

    Velhos e cagões

    02/07/2015 10h07

    Parece que foi ontem. Eu descia a ladeira da casa onde morava a mil por hora em cima de uma mobilete. O vento batia no rosto, eu tirava as mãos do guidão. Nem sabia que o nome disso era sensação de liberdade. Só sabia que era bom, o que dava no mesmo.

    Era uma baita ladeira. E eu só tinha uns dez anos. Hoje, meus pais seriam chamados de irresponsáveis. Ainda bem que eu cresci nos anos 1980 quando isso era chamado de diversão. E ninguém se metia na criação dos filhos dos outros.

    Lembrei desses dias de ladeira, vento no rosto e mãos fora do guidão dias atrás, quando desci uma piramba bem menos perigosa de uma montanha cheia de neve. As mão grudadas no meu mini-trenó, os pés servindo de freio e a sensação de não-quero-me-estabacar-lá-embaixo.

    De onde veio esse medo, se até ontem eu não era assim? Desde quando tenho sangue de barata correndo nas veias, se até ontem saltava de paraquedas?

    A gente fica velho e nem percebe. Não se dá conta de que há uma diferença abissal entre envelhecer e morrer pra vida. Alguém, de que eu não me lembro agora, já disse que "não paramos de brincar porque ficamos velhos. Ficamos velhos porque paramos de brincar". Ficamos velhos e cagões.

    A gente se pega sempre com um casaco e um guarda-chuva na bolsa. Não aceita mais convites de última hora, não muda planos, não conversa com estranhos, não come coisas esquisitas, tem uma nécessaire que parece a filial da Droga Raia, começa a dormir de meias, evita cachoeiras frias, vai pra Nova York duas vezes por ano, mas não conhece Lençóis Maranhenses porque tem muita areia, nunca mais vimos o sol nascer depois de uma noitada. O que é mesmo noitada?

    A gente cresce e fica com medo da vida. Passei a ter medo de avião. De tomar caldos no mar. De andar na rua sozinha. De engasgar com espinha de peixe. De andar descalça no mato. De romper os ligamentos. De comer salsicha. De ser comida por um tigre na Tailândia.

    Nem sou velha, mas estou virando uma cagona. Imagine velha. Não quero imaginar. Quero envelhecer e não ficar velha. Ser velho não requer talento nem habilidade. Envelhecer bem são outros 350. O dinheiro anda tão curto que a inflação desvalorizou o ditado.

    Há esperança. Faço e dou risada de piadas cretinas. Desafio a data de validade dos alimentos. Misturo manga com leite. E antibiótico com álcool. E tequila com cerveja. Nado depois das refeições. Não uso protetor solar todos os dias. Esqueço de tomar água. Saio no frio com o cabelo molhado. Durmo tarde mesmo se preciso acordar cedo. Tomo vinho na hora do almoço, no meio do expediente. Viajo quando não tenho dinheiro. Parcelo em 12 vezes.

    Subi novamente a montanha arrastando meu trenó, acomodei o velho traseiro, encarei a descida e tirei o pé do chão. Senti o vento no rosto, a velocidade engolindo o caminho, até me estabacar lá embaixo num muro de neve fofa. Tinha neve dentro das botas. Tinha neve dentro do nariz. Tinha um sorriso no meu rosto. Tinha dez anos de novo.

    Numa próxima vez desço sem as mãos. A vida é muito curta para segurar o guidão o tempo todo.

    mariliz pereira jorge

    É jornalista e roteirista.
    Escreve às quintas e sábados.

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